Arquivo da tag: Violência

Tintas que falam de um tom: o carmim da violência contra a mulher

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Todos os anos no mês de Março comemoramos o Dia Internacional da Mulher (08/03). Mais do que uma comemoração, temos sim um dia de reflexão: são histórias de vidas de mulheres pelo mundo, muitas vezes escritas com tintas em carmim. Espero que propiciem reflexão e que sejam como um grito para que não sejam estas as tintas a escrever histórias femininas.

Por ser de tons, cores, feminino e mulheres que escolho a mitologia colorida hindu das deusas da beleza e da fertilidade que inicio a leitura destas tintas.

LakshmiSarasvati e Durga são deusas mitológicas femininas do hinduísmo. Veneradas e reconhecidas pela simbologia que trazem ao imaginário feminino indiano.
Lakshmi ou Laxmi é uma personificação do amor na forma feminina do hinduísmo, esposa do aspecto divino Vishnu, o sustentador do universo. É personificação da beleza, da fartura, da generosidade e principalmente da riqueza e da fortuna. Este aspecto divino é sempre invocado para amor, fartura, riqueza e poder. É o principal símbolo da potência feminina, sendo reconhecida por sua eterna juventude e formosura.

Sarasvati é a deusa hindu da sabedoria, das artes e da música e a shákti, que significa ao mesmo tempo poder e esposa, de Brahma, o criador do mundo.

É a protetora dos artesãos, pintores, músicos, atores, escritores e artistas em geral. Ela também protege aqueles que buscam conhecimento, os estudantes, os professores, e tudo relacionado à eloquência, sendo representada como uma mulher muito bela, de pele branca como o leite, e tocando cítara (um instrumento musical). Seus símbolos são um cisne e um lótus branco.

Durga, reencarnação de Satī (Devanagari: सती, o feminino de sat “verdade”) ou Dākshāyani é a deusa da felicidade conjugal e longevidade; ela é particularmente adorada pelas esposas, a fim de procurar prolongar a vida de seus maridos. Um dos aspectos de Devi, Dākshāyani é a primeira consorte de Shiva (o destruidor de mundos), em segundo lugar Parvati, a sua reencarnação.

Ela é também a deusa da beleza, a virtuosa, e ressurge com diferentes manifestações, na forma de outras deusas, daí ser chamada de deusa das mil faces. Tem muitos atributos e, desde a era védica, um dos principais é a fertilidade, a força que gera a procriação no mundo e nas espécies. É a própria geração da energia criadora, em sânscrito chamada de Shakti.

Tomando como mote esta representação mitológica, uma agencia de publicidade indiana decidiu mostrar o que a violência contra a mulher faria com tais deusas. Maquiagem foi usada para adicionar hematomas e feridas às modelos antes fotografá-las.
O resultado:

Eis a recriação da deusa Saraswati.

Esta é a recriação da deusa Lakshmi;

A campanha de forma simples e eficaz captura contradição mais perigosa da Índia: a de reverenciar as mulheres na religião e mitologia, enquanto a nação continua a ser incrivelmente insegura para as suas cidadãs mulheres. 

Esta é a recriação da deusa Durga.
A campanha adverte: “Só no ano passado, 244.270 crimes contra mulheres foram registrados na Índia.”

E o Brasil?

Quanto se aproxima ou distância dessa campanha?
O relatório do IPEA (Instituto de Pesquisa Aplicada) inicia seu relatório de 2013, referente ao período compreendido entre 2009 e 2011 com a seguinte afirmação:

“A expressão máxima de violência contra a mulher é o óbito”

Apesar de forte traz em seu bojo uma verdade contundente: a violência pode simplesmente extirpar o direito à vida. Mas essa expressão máxima ocorre uma única vez. E o que ocorre com todas aquelas pequenas, frequentes e intermináveis violências sofridas cotidianamente e que não constam em estatísticas, dados ou registros?  E que só serão registradas quando encontram sua dita “expressão máxima” e transformadas em feminicídio? Como pensar que a morte e a violência sempre parte dos que se chamam companheiros e que dividem talheres e lençóis? Ou que podem chegar na forma biológica de alguém que deveria proteger, como ocorre com pais, irmãos, tios ou demais parentes próximos?

Os índices dessa proximidade são assustadores: 40% dos casos de feminicídio são cometidos por  companheiros íntimos, contra 6% de casos onde é a companheira a assassinar. A violência nesse caso,  produzida por companheiro íntimo chega a ser mais de 6 vezes maior.

Segundo o IBGE as formas de agressão física por gênero no Brasil podem ser assim distribuídas:

O dado aqui é contundente: o maior índice de agressão contra a mulher ocorre em casa, em 43% dos casos na Região Norte, 47% na Região Nordeste e  40% na Região sudeste do Brasil. Respectivamente os índices caem vertiginosamente para o gênero masculino, ou seja: 11% na Região Norte, 12,9% na Região Nordeste e 10,9% na Região Sudeste. 
Mas ainda pior que isso, foi constatar que os locais onde estes abusos ocorrem são exatamente locais que deveriam acolher e que pela ordem incluem a própria casa, a casa de terceiros (que podem incluir familiares próximos), estabelecimentos comerciais, a rua e até instituições de ensino. Ou seja, nem um lugar parece ser suficientemente seguro para protege-las contra violências diversas incluindo até abusos sexuais e estupros.

Aqui os índices são reveladores: o grau de violência aumenta contra a mulher na mesma proporção em que o nível de relação com o agressor também cresce. O que reforça a compreensão de que a violência contra a mulher é sempre vinda pela mão de um agente conhecido ou muito próximo.
A relação com agressores muitas vezes indica que são pessoas de seu círculo mais próximo e que usando desta proximidade confiam que nada acontecerá.
De outro lado, até por conta desta proximidade muitas se sentem intimidades a denunciar abusos e violências.

A Sociedade e a percepção da violência
Uma pesquisa de opinião, realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, revelou que a sociedade percebe e sofre tais índices. Em forma gráfica, veja de que forma:

Uma escrita em carmim:

De todos os dados, levantamentos, índices, o que temos é uma escrita em números feitas em tons carmim.
A violência doméstica ainda rouba existências, sonhos, direitos, dignidades… vidas.
Tingem de sangue ao mesmo tempo que apagam  viveres, possibilidades.

Maculam laços e revelam que números não são suficientes para dar conta de projetos não realizados, de vidas não vividas. Não dão conta de mostrar que a violência pode também ocorrer por dias, anos, toda uma vida cotejada em carmim por constantes maus tratos, desrespeitos, assédios, silêncios e não ditos. Calam e intimidam suas vítimas pelo medo ou força.

Apesar de concentrar-me neste post na violência de âmbito doméstico, não posso deixar de registrar a violência  miúda e cotidiana em mundos corporativos onde ser mulher é moeda desigual e tida como de menor valor.

Algumas coisas são como a tessitura de um bordado: vamos colocando ponto por ponto, dado por dado, tom sobre tom até que ao final temos um belo rendando.
Não inventei nada! Apenas cavei um pouco de um lado e de outro.

A todos os que tingem de carmim essas histórias de vida deixamos nosso repúdio e desprezo. Não trouxeram nada e ao contrário: levaram embora! Mancharam suas mãos e levam pela eternidade essa nódoa…ninguém sentirá sua falta!

Ah! E já ia esquecendo: ainda teremos o Dia do Índio, da Árvore, da Água, da Criança…

_______________________
* Este post é uma versão atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
** Posts Relacionados:
Infância Roubada
Afinal, quem você pensa que é?
O Sequestro das Palavras
Empatia e gentileza: para quê, para quem e porquê?

***
Siga-nos: 
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

Infância Roubada

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Roubam-se infâncias. Expropriam-se direitos e vidas.
Do lado de fora, guerra e ruínas, pouco para comer, trapos para vestir, feridas para cuidar. Janelas sem vidros, paredes cobertas de mofo. Para se aquecer apenas o calor de outros corpos. Pés descalços e desolação ao largo. Caminhos estilhaçados feitos de abandonos, pedras e entulhos.
Não há para onde voltar e nem para onde ir.
Tanta agrura sob luzes e sombras…  

Cenários de desolação, fome, morte, doenças e condições desumanas. A guerra retira de todos sua dignidade e vontade. Instala apenas o básico da luta pela sobrevivência, nem que esta, ao invés de pautar-se na solidariedade, paute-se na luta contra o próximo. Luta entre desiguais. Sempre…

Pauperismo físico, mental, emocional… Almas carentes e em agonia de ser e estar.

Mas se não estão em campos de refugiados ou áreas de guerra, encontram-se em campos de carvão, minas, oficinas, lavouras… onde suas mãos miúdas tecem, quebram, queimam migalhas que garantem a manutenção apenas diária. Cobrem-se de terra, lama, poeira, cinza, graxa. Consomem-se ante o calor escaldante, gélidas temperaturas ou chuvas torrenciais.

O asfalto os planta em cruzamentos de espaços urbanos, onde bolas, balas e malabares tornam-se moeda de troca para engrossar formas de expropriação das pequenas somas obtidas no decurso dos dias.

Há ainda o próprio corpo: destituído, expropriado, prostituído. Possuído à força, pela vilania ou simplesmente pelo prazer do sofrimento do mais fraco. Não necessariamente vem do desconhecido e distante. Pode morar sob o mesmo teto. Pode ter nas veias o mesmo sangue. De novo luta entre desiguais.

Sem solidariedades, encontram no silêncio armas contra si vindas de iguais veias. Muitos tem nos progenitores as figuras de cúmplices coniventes.   

A conivência com o abandono, a morte e a violência encontra igualmente num Estado ausente e omisso formas de mais exclusão. Direitos fundamentais como: educação, abrigo, alimentação, saúde são simplesmente ignorados. Morre-se de balas que não são perdidas, mas que encontram corpos frágeis dentro do que seria seu lar, sua escola, seu bairro. Outros encontram a cooptação pelo crime organizados e usam seus poucos anos para trocar por alguns vinténs. Vida curta e breve, que não vale à ninguém.

A exploração infantil tem assim muitas faces. Mas há também outras formas de abandono!
Aquelas onde não há o cuidado dos limites. Dos nãos. Onde o excesso material é fornecido para compensar ausências e carências emocionais e de filiação. Deixados a sós e cuidados por suas babás eletrônicas descobrem cedo que seu poder de barganha é dado pelo que conseguem consumir.

Consumir se transforma no objetivo único e propósito de suas vidas. As relações passam a ser medidas apenas pelo que se possui. Pequenos e cruéis ditadores nas suas relações com os mais velhos e ausentes. Ausências feitas não apenas de presença física, mas de sentidos morais, éticos e de valores.

Tiram-se de existências tempos… da infância, da inocência, da alegria e leveza, do brincar!
Sequestros de chances e de possibilidades.

Para onde ir? Com que tintas mudar as cores desta paleta?
Onde está o sonho roubado? Por qual janela voou?
Provavelmente no próximo sorriso que nasce, na vida que brota em meio as pedras, nos raios da luz pálida de um dia dourado de outono, nas solidariedades tecidas por vidas que se cruzam e compatibilizam…

Ou…
Na vida que se deixa voar e liberta-se!


* Versão atualizada de post publicado originalmente no meu blog, o Pensados a Tinta

________________

Posts relacionados:
Empatia e gentileza: para quê, para quem e porquê?
O trabalhador invisível
Escrita em carmin…até quando?

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).