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Entenda o que são os Acervos Privados da Presidência da República

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Um tema que por muito tempo esteve quase que adormecido ganhou notoriedade a partir do escândalo das joias cravejadas em brilhantes que se tornaram conhecidas a partir de investigação da Polícia Federal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Nunca em toda a História da República um valor tão vultuoso teria sido dado como “presente” a um Presidente.

Em pouquíssimo tempo muitas dúvidas surgiram: afinal, o que são estes acervos? O que diz a legislação federal tem a dizer sobre o tema? Como a bibliografia técnica entende tais Acervos Privados da Presidência da República? Qual a diferença entre este e outros tipos de Acervo? Por que eles precisam ser denominados como Acervos Privados da Presidência da República e não simplesmente Arquivos ou Acervos? Quais são suas características e especificidades? Que relação existe entre tais Acervos e a Preservação e Conservação de Patrimônio Cultural Documental?

Vejamos:

Em períodos anteriores aos anos de 1980 já havia preocupação em relação ao destino de acervos que pertencessem aos então Presidentes da República, mas não havia uma legislação regulamentadora. Os acervos eram compostos em sua maioria por correspondências, registros fotográficos, sonoros, audiovisuais, entre outros.

Um pouco antes, ainda em princípios da década 1970, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas é criado com o objetivo de tratar acervos pessoais de personalidades.
Por este princípio e por um trabalho reconhecidamente metodológico de tratamento de acervos, foram convidados a participar do Projeto “Memória do Governo Sarney”, que havia sido Presidente da República no período entre 1985-1990. Diante desta situação foi formado um grupo específico para estudar as especificidades destes Acervos e as formas de tratá-lo e divulgá-lo, ao mesmo tempo em que se cuidaria de sua preservação e conservação.
Um dos produtos deste trabalho pode ser consultado na base de dados existente ainda hoje no Centro de Referência de Acervos Presidenciais que contam com acervos dos ex-Presidentes Manuel Deodoro da Fonseca (1889-1891) até o José Sarney (1985-1990).

Do ponto de vista jurídico porém, outras necessidades se impunham. E assim, duas normativas dos Acervos Privados da Presidência da República foram elaboradas. A 1ª é a Lei nº 8.394, de 30 de dezembro de 1991, assinada pelo então presidente Fernando Collor de Melo e que dispunha sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República e a sua regulamentação, por meio do Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Por falta de uma normatização mais específica em relação a valores e tipos de presentes ofertados, a Lei de 1991 e o Decreto de 2002 foram sendo utilizadas pelos Presidentes que as sucederam dentre eles Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (1º mandato).

Apesar da Lei e do Decreto ainda existiam algumas brechas que necessitavam ser melhor normatizadas, em especial no que concernia a valores e tipos de presentes que deveriam ser considerados privados e quais deveriam ser incorporados ao Patrimônio Nacional.
O primeiro momento em que o questionamento se tornou uma necessidade de regramento destes acervos quando estes foram alvo de litigio em 2016, devido à operação Lava Jato, e em função do questionamento do que deveria ser considerado presente pessoal do presidente e o que deveria ser incorporado ao Patrimônio da Nação, estabeleceu-se o chamado Acórdão/TCU nº 2255/2016.
Por este instrumento ficou determinado que os presentes recebidos em missões oficiais não seriam de caráter particular do Presidente, mas sim deveriam ser incorporados ao Estado Brasileiro, não sendo permitido ao mandatários que estes bens fossem tomados como pessoais. Na mesma ocasião, ficou determinado que estudos mais aprofundados fossem feitos, já que haviam poucos estudos sobre como tratar tais acervos e suas peculiaridades.
Ficou também decidido que poderiam ser considerados presentes personalíssimos itens como: camisetas de clube, bonés, bebida típica, um bordado, etc. Ou seja, algo de valor muito baixo e que fosse de uso exclusivo e pessoal.

Em síntese, o que tínhamos até o ano de 2016 as únicas regras claras que existiam sobre o que deveria ser considerado patrimônio da nação eram os presentem recebidos em cerimônias oficiais de troca de presentes entre nações. Com o Acórdão citado acima as regras ficaram muito mais claras, e a partir delas presentes recebidos por Lula e Dilma que não estavam dentro deste recorte legal foram incorporados ao Patrimônio da União.

Seguindo o Acórdão do TCU o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu 9.037 itens nos seus primeiros 2 mandatos (2003-2010) e teve que incorporar ao Patrimônio da União 559 presentes. A lista contendo fotografias destes presentes pode ser vista aqui

Dilma devolveu 144 presentes. Nos dois casos os presentes não encontrados foram ressarcidos em dinheiro.

É importante ressaltar que mesmo estando com os ex-presidentes os presentes estavam devidamente registrados no INFOAP (Sistema de Gestão de Acervos Privados da Presidência da República).
Nos dois casos houve a devolução e/ou reembolso nos casos de objetos não localizados, já que os dois mandatos foram exercidos antes do Acórdão de 2016 e haviam obedecido as regras da lei de 2002.

A Teoria Arquivística aplicada à Acervos Privados da Presidência da República

Ao falarmos de acervos precisamos compreender de que forma a teoria arquivística os trata. Consideramos, de acordo com o Dicionário Arquivístico, um Acervo aquela documentação que é originária da acumulação no desempenho de funções administrativas desempenhadas em um cargo público. O acervo está intimamente relacionado às funções que o mandante desempenha e por meio delas pode-se ter acesso à História desta instituição. Tais documentos são considerados assim não porque nascem para ser patrimônio ou documentos históricos, mas sim para cumprir seu papel em uma função pública.
Entretanto, quando pensamos em acervos privados da Presidência da República encontramos algumas dificuldades técnicas:

1. Em primeiro lugar, temos a distinção entre o que seja público e privado e os documentos produzidos nesta seara que seja de interesse público. Afinal, temos um ente físico desempenhando uma função pública, e portanto, vários itens que fazem parte de seu acervo podem ter características ora privadas, ora públicas dependendo de ocasiões específicas.

2. De outra sorte, os Acervos Privados da Presidência da República não representam uma coleção no seu sentido estrito, já que seu acúmulo e/ou reunião de documentos que os compõe não se dão por escolha direta de seu titular. Sua coleção é orgânica, mas nem sempre representa os critérios de seleção de seu titular.
Em geral, as coleções quando organizadas pelos seus próprios acumuladores possui uma lógica específica que se dá por interesses pessoais de seus possuidores. Neste sentido, elas espelham fielmente o que pensa e o que protagoniza seu acumulador. No caso analisado aqui não é uma coleção no seu sentido estrito já que cada documento chega de diferentes formas e por diferentes razões. Simplesmente são incorporados de uma forma cronológica a partir de visitas, cerimônias e encontros protocolares.

3. Ainda é preciso deixar claro que em relação aos documentos que chegam a ser incorporados nestes acervos não se pode dizer que sejam exclusivamente documentos arquivisticos, nem tão pouco podem ser considerados pessoais. Tais documentos possuem um caráter muito mais político e diplomático e seus suportes e significados deixam isso muito claro, especialmente pelos que ofertam os presentes. Muitos destes presentes são formas de demonstrar amizade ou divulgar a cultura de quem visita ou é visitado.

4. Tanto por sua forma como por seu acúmulo tais acervos estão longe de ser considerados acervos pessoais, já que para este caso específico há uma profunda e objetiva intencionalidade de seu proprietário em reunir, ter e manter determinados documentos em detrimento de outros. No caso de documentos pertencentes ao acervo privado da presidência não há esta possibilidade de seleção e escolha.
A forma de organização NUNCA é pessoal, como ocorre com arquivos pessoais onde o pensamento do seu titular fica espelhado em suas preferências por determinados documentos. No caso de Acervos Privados da Presidência da República é muito mais usual que a organização se dê de forma rotineira por servidores destacados burocraticamente para fazer tais tarefas. Esta organização obedecerá, de acordo com os servidores destacados perfis diversos que podem ser bibliográficos, museológicos, arquivisticos e/ou históricos.
A organização destes acervos acaba sendo cronológica e não consegue ser fechada como é de praxe em fundos arquivisticos. Alguns princípios da arquivística, biblioteconomia e museologia serão respeitados em sua organização, mas não em sua totalidade por conta da forma como estes documentos em diversos suportes dão entrada ao acervo.

5. Outra característica que diferencia estes Acervos Privados da Presidência da República de outros tipos de documentos arquivisticos é seu uso como sendo elemento de prova. Por tratar-se de um acervo específico como o da presidências ele provavelmente não estará inserido nesta modalidade de servir de prova, já que haverão outros documentos na Administração Pública que poderão oferecer tais subsídios e com muito mais riqueza de detalhes.

É preciso lembrarmos que a Constituição de 1988 esclarece em detalhes como se deve proceder sua guarda, sigilo e acesso com fins de preservação de memória e como forma de produção de conhecimento por meio de pesquisa, com documentos que denomino tridimensionais – que abarcam todo o conjunto do acervo do Palácio do Planalto que vai desde sua arquitetura e estruturas até suas tapeçarias, mobiliários, obras de arte diversas, paisagismo e jardins – as especificações não são tão pormenorizadas, e podem levar à pratica de erros como os que a reportagem acima revelou. Se os habitantes do Planalto não possuem sensibilidade e algum nível de respeito à coisa pública teremos tais problemas.

Os chamados Acervos Privados da Presidência da República possui uma equipe técnica e fixa que se responsabiliza por catalogar os diferentes documentos que passam a fazer parte do acervo desde o momento que o Presidente é empossado. Mas ao deixar a Presidência tais documentos não são considerados plenamente seus ou privados. Por possuírem interesse público e poderem ser utilizados para fins de pesquisa não podem ser vendidos sem antes ser oferecidos à União e nem podem ser remetidos para fora do país sem a autorização do Estado Brasileiro. Por estarem inseridos na Administração Pública, devem obedecer criteriosamente aspectos determinados em metodologias de acervos arquivisticos, bibliográficos e museológicos de acordo com seus suportes e obedecer rigorosamente os termos que se relacionam a tombamentos e descrição de objetos de arte quando for o caso (lembrando que há casos de telas, tapeçarias, vasos, pratarias entre outros objetos considerados obras de arte).

Por tudo isso, ex-presidentes criam Fundações ou Institutos para que tais acervos continuem a ser cuidados e acessados. Além disso, são eles que devem arcar com as custas de preservação, conservação e tratamento técnico documental destes acervos.

A Lei nº8.394, de 30 de dezembro de 1991 é a que disciplinou num primeiro momento os “Acervos Privados da Presidência da República” e que posteriormente teve o Decreto publicado em 2002 e o Acórdão citado acima pelo TCU em 2016

O texto da Lei nº8.394 deixa claro quais devem ser as ações e responsabilidades destes acervos como se nota a seguir:

Art. 5° O sistema dos acervos documentais privados dos presidentes da República terá participação do Arquivo Nacional, Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), Museu da República, Biblioteca Nacional, Secretaria de Documentação Histórica do Presidente da República e, mediante acordo, de outras entidades públicas e pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que detenham ou tratem de acervos documentais presidenciais.

        Art. 6° O sistema de acervos documentais privados dos presidentes da República, através de seus participantes, terá como objetivo:

        I – preservar a memória presidencial como um todo num conjunto integrado, compreendendo os acervos privados arquivísticos, bibliográficos e museológicos;

        II – coordenar, no que diz respeito às tarefas de preservação, conservação, organização e acesso aos acervos presidenciais privados, as ações dos órgãos públicos de documentação e articulá-los com entidades privadas que detenham ou tratem de tais acervos;

        III – manter referencial único de informação, capaz de fornecer ao cidadão, de maneira uniforme e sistemática, a possibilidade de localizar, de ter acesso e de utilizar os documentos, onde quer que estejam guardados, seja em entidades públicas, em instituições privadas ou com particulares, tanto na capital federal como na região de origem do Presidente ou nas demais regiões do País.

        IV – propor metodologia, técnicas e tecnologias para identificação, referência, preservação, conservação, organização e difusão da documentação presidencial privada; e

        V – conceituar e compatibilizar as informações referentes à documentação dos acervos privados presidenciais aos documentos arquivísticos, bibliográficos e museológicos de caráter público.

LEI NO 8.394, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1991 – QUE DISPÕE SOBRE A PRESERVAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E PROTEÇÃO DOS ACERVOS DOCUMENTAIS PRIVADOS DOS PRESIDENTES DA REPÚBLICA E DÁ PROVIDÊNCIAS

E foi a partir disso que, tanto o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como Luís Inácio Lula da Silva, instituíram Fundações que pudessem cuidar de todos estes conjuntos de documentos.

Acompanhe abaixo como cada um dos ex-presidentes lidou com seus acervos:

Abaixo, a própria fala do ex-presidente FHC sobre seu Instituto>

(…) Nasceu assim a ideia de fundar um instituto. Quis que ele fosse não só um centro de memória histórica, mas também um lugar de debates sobre a democracia e o desenvolvimento. Duas causas com as quais estive envolvido desde muito cedo. Desempenhando um ou outro papel, sua missão para mim seria uma só: contribuir para ampliar a compreensão e disseminar conhecimento sobre o País e seus desafios, com os olhos abertos para o mundo.
Inaugurado em maio de 2004, com um debate internacional que reuniu políticos e intelectuais do Brasil e do exterior, entre eles, Bill Clinton e Manuel Castells, o Instituto transformou-se em Fundação em 2010. O objetivo da mudança foi o de fortalecer o iFHC – hoje chamado Fundação FHC, como instituição perene, comprometida com a missão definida em sua origem(…)

FHC

Abaixo, temos as explicações sobre o Instituto Lula que abriga o Acervo do Presidente de seus dois primeiros mandatos, e que provavelmente abrigará o deste terceiro mandato:

“(…) O Instituto Lula tem a responsabilidade de cuidar do acervo que deixou Brasília junto com Lula em 2011, e o faz com toda transparência. São milhares de cartas, livros, CDs, fitas, quadros, gravuras, fotografias, álbuns, DVDs, presentes de altas autoridades, instituições, empresas e populares, assim como prêmios, condecorações e títulos que Lula recebeu. Todo esse material está catalogado, embalado e armazenado. Neste link você pode consultar todos os objetos do acervo. (…)”

No ano de 2021 foi assinada uma Resolução que dispôs sobre os Acervos Documentais Privados da Comissão Memória dos Presidentes da República e que segue como publicado em 09 de Dezembro de 2021, e que tenho certeza que após tudo o que ocorreu no caso dos diamantes será amplamente revisada e devida esclarecida.

O que continua sendo claro é o compromisso de que os documentos em diferentes suportes são de responsabilidade do setor de Memória da Presidência da República nos casos de acervos que serão incorporados à Nação e no casos dos documentos que compõe o Acervo Privado do Presidente da República deverão ter garantida sua segurança, preservação, conservação, tratamento técnico documental (higienização, descrição, indexação, digitalização, manuseio e acesso), eventualmente trabalhos de exposição e divulgação como forma de divulgar e preservar a Memória do Executivo.
Mesmo os documentos que por ventura sejam indexados em bases digitais ou que existam em tais formatos deverão ter garantidos aspectos relacionados à sua preservação digital e garantias de acesso. Lembrando que tais documentos possuem valor permanente e compõe o conjunto de documentação histórica do país.

A importância destes acervos e do cabedal necessário para tratar de todo este conjunto favorece a solicitação de profissionais técnicos qualificados para tratar adequadamente cada um destes acervos nos seus diferentes suportes. O que deixa claro a necessidade de uma equipe interdisciplinar.

A preservação de Patrimônio Cultural Documental e a Responsabilidade Histórica como forma de garantir fortalecimento da Memória do Executivo

Todo este debate sobre a importância dos Acervos Privados da Presidência da República serve para demonstrar de que forma a Administração Pública e a guarda documental necessitam de regras e procedimentos para que possam cumprir suas funções.
Se para a Administração Pública como um todo, temos a Gestão Documental e a elaboração de Tabelas de Temporalidade Documental instituindo prazos e locais de guarda, o caso dos Acervos Privados da Presidência da República necessitam de uma outra forma de regramento.

Conforme citei no artigo “Abandono e/ou Destruição de Patrimônio Cultural e Arquitetônico é crime!”

Diante tudo isso, e como forma de auxiliar tais chefes de Estado, há a previsão de destino de verbas para a realização de obras de preservação, conservação e até restauração tanto de obras arquitetônicas, quanto de peças de arte, mobiliários, paisagísticos.
Mas tudo isso simplesmente não se efetiva se as pessoas que tem sob sua responsabilidade esta tarefa não estejam sensibilizadas suficientemente e compreendam que cuidar da preservação, conservação e até restauração de um acervo tão rico e plural deve fazer parte de uma política de cultura da preservação de patrimônio, atendendo de perto ao que seja minha concepção de Responsabilidade Histórica.
É esta consciência de que o Presidente da República é o responsável direto a imprimir e propiciar que tais cuidados se efetivem e que isso seja parte de sua política cultural, já que estará cuidando de um legado que é de todos e que precisa ser entregue ao futuro. Daí a aplicação do conceito de Responsabilidade Histórica.

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Como dito acima, estes acervos possuem peculiaridades e é muito importante que apesar de haver Decretos e Acórdãos regulamentando, é essencial que haja profissionais que compreendam tais especificidades e consigam tratar toda a gama de documentos, muitos dos quais em formatos diversos, com necessidades específicas de higienização, identificação, catalogação, indexação e guarda com vistas à preservação (já que estes documentos possuem valor permanente, ou seja, NUNCA poderão ser eliminados). Tais Acervos Privados da Presidência da República se assemelham muito à concepção de Centros de Documentação e/ou Referencia, dada a similaridade de sua acumulação, bem como sua diversidade de temas e suportes, exigindo profissionais de áreas tão distintas como História, Diplomacia, Biblioteconomia, Arquivística, Museologia para ficar em apenas algumas áreas.

Por isso, FHC e Lula optaram para criar instituições, e que nelas pudessem abrigar os diferentes acervos e profissionais capacitados trabalhando na sua guarda e custódia. Além de trabalhar especialmente com divulgação das informações contidas nestes acervos,. FHC por seu perfil acadêmico colocou sua Fundação num âmbito bastante acadêmico e de formação. Lula por estar muito ligado à Movimentos Sociais tem um Instituto que trabalha muito próximo destes setores.

Cabe ressaltar que nos dois casos o tratamento técnico documental é realizado e toda a documentação obedece os termos de preservação e conservação dos documentos com esta importância. Mas nem por isso, necessitam ser idênticos em sua forma. Como mostrado nos vídeos acima, cada um deles encontrou uma forma de cumprir o que a legislação determina. Tal como ocorre com Centros de Documentação e/ou Memória não existe uma ÚNICA fórmula a ser usada. Cada equipe deverá encontrar a melhor forma de tratar a documentação e dar a ela sentido de acordo com seu titular presidencial e ao mesmo tempo encontrar maneiras de divulgar estes acervos ao mesmo tempo em que cuida de sua preservação e conservação.

É importante deixar muito claro que o compromisso de preservação e conservação de acervos envolve não apenas os presentes recebidos pelos Presidentes da República no desempenho de suas funções. A eles cabem também o cuidado com todo o conjunto composto pelo Palácio do Planalto, Palácio do Alvorada e todas as obras de arte e mesmo a parte arquitetônica destas edificações. Ainda no artigo “Abandono e/ou Destruição de Patrimônio Cultural e Arquitetônico é crime!” abordei esta questão e os maus tratos sofridos por tais obras arquitetônicas e muitas de suas obras durante o governo Jair Bolsonaro (2019-2022), e que tal descaso pode ser considerado crime e falta do cuidado com o que denomino Responsabilidade Histórica e como esta se mantém quando a Memória Institucional se fortalece a partir do conjunto de informações trazidas pelo conjunto de documentos presidenciais.

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** Referencias:
ABREU, A. A. Apresentação. In: SILVA, S. B. Os presidentes da república: guia de acervos privados. Rio de Janeiro: FGV, 1989.
ARQUIVO NACIONAL. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006
BRASIL. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras Providências. Diário Oficial da União, Brasília, 9 jan. 1991a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm. Acesso em 15/03/2023
BRASIL. Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002. Regulamenta a Lei no 8.394, de 30 de dezembro de 1991, que dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 ago. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4344.htm.Acesso em 15/03/2023
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2255/2016. Plenário. Relator: Walton Alencar Rodrigues. Sessão de 31 ago. 2016. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wpcontent/uploads/sites/41/2016/09/52_OUT4-TCU-TRALHAS-LULA.pdf. Acesso 15/03/2023
CRUZ, B. S.; BEZERRA, M. FHC na defesa de Lula: “cuidar de acervo é obrigação, mas
não há dinheiro”. 2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/02/09/fhc-na-defesa-de-lula-cuidar-de-acervo-e-obrigacao-mas-nao-ha-dinheiro.htm . Acesso em 15/03/2023
RODRIGUES, Georgete Medleg e LOPES, Bruna Pimentel. “Os acervos privados de presidentes da República no Brasil: entre as noções de propriedade privada e de interesse público” In: InCID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 10, n.1, p. 64-80, mar./ago. 2019 – DOI: 10.11606/issn.2178-2075.v10i1p 64-80

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Dias Escuros em Tempos molhados

Por: Carlos Drummond de Andrade – Correio da Manhã, 14/01/1966*

Por: Eliana Rezende Bethancourt**

Os dias escuros
“(…) Amanheceu um dia sem luz – mais um – e há um grande silêncio na rua.
Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores.
A cidade, ensopada de chuva, parece que desistiu de viver.
Só a chuva mantém constante seu movimento entre monótono e nervoso.


É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí está, molhando, ensopando os morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós. Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos.
Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa gente precisando de colchão, roupa de corpo, comida, medicamento.
O calhau solto que fez parar a adutora.
Ruas que deixam de ser ruas, porque não dão mais passagem. Carros submersos, aviões e ônibus interestaduais paralisados, corrida a mercearias e supermercados como em dia de revolução.

O desabamento que acaba de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos instantes.
Este, o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência de seus horrores.
Sim, é admirável o esforço de todo mundo para enfrentar a calamidade e socorrer as vítimas, esforço que chega a ser perturbador pelo excesso de devotamento desprovido de técnica. Mas se não fosse essa mobilização espontânea do povo, determinada pelo sentimento humano, à revelia do governo incitando-o à ação, que seria desta cidade, tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infra-estrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho?
Mobilização que de certo modo supre o eterno despreparo, a clássica desarrumação das agências oficiais, fazendo surgir de improviso, entre a dor, o espanto e a surpresa, uma corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados.

Chuva e remorso juntam-se nestas horas de pesadelo, a chuva matando e destruindo por um lado, e, por outro, denunciando velhos erros sociais e omissões urbanísticas; e remorso, por que escondê-lo?

Pois deve existir um sentimento geral de culpa diante de cidade tão desprotegida de armadura assistencial, tão vazia de meios de defesa da existência humana, que temos o dever de implantar e entretanto não implantamos, enquanto a chuva cai e o bueiro entope e o rio enche e o barraco desaba e a morte se instala, abatendo-se de preferência sobre a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza; a mão de obra de hoje, esses trabalhadores entregues a si mesmos, e suas crianças que nem tiveram tempo de crescer para cumprimento de um destino anônimo.

No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do Rio de Janeiro (…)”.

Rio de Janeiro – 1966

Não, não a História não se repete…a História não é cíclica. Nós humanos que gostamos de nos repetir em nossos erros vezes sem conta.

Aprendemos pouco com o que o Tempo nos deu e teimamos em ocupar espaços que não nos pertencem, em cobrir caminhos que margeiam rios, encostas. Teimamos em alterar itinerários, desmatamos e largamos cicatrizes imensas em territórios que não possuem como se proteger a não ser permitir que corredeiras se façam.
As águas que escorrem misturam-se a terra que rapidamente vira lama e esta como uma onda pegajosa arrasta construções, objetos e pessoas quase sem diferenciar cada um deles pela força que os consegue arrastar. Deixa atrás de si um rastro de destruição, perdas e mortes.
E é assim que todos os verões sabemos que a chuva chegará dentro de uma grande nuvem negra, que se desabotoará por encostas e atingirá prontamente aqueles que nem sempre por escolha estão ali. E assim, ano após ano contamos nossos mortos e ouvimos as promessas que NUNCA se cumprirão de que haverá moradias e lugares decentes para todos.

Tal como nos diz o poeta são nos dias escuros que percebemos que a luz que nos deixou trouxe a água que enche ruas, bueiros e leva tudo o que encontra. Serão estas águas que carregarão os corpos de trabalhadores urbanos e suas casas insalubres e farão subir as estatísticas das vidas que foram interrompidas. Acontece que vidas interrompidas são projetos de existência que não se deram, que não ocorreram e NUNCA poderão ser confundidos com estatísticas de inundações, deslizamentos ou desabamentos.

A cidade, os leitos de rios e córregos transbordam e acabam por refletir a forma como eles próprios são maltratadas, usados e desrespeitados. O lixo produzido e jogado por janelas ou despejados em esgotos ilegais auxiliam no acúmulo do que será despejado logo à frente quando estes encontrarem barrancos e barracos.

Os elementos são muitos e variados e cada sociedade e tempo traz seus elementos que comporão as crônicas do dia seguinte, que parece se repetir indefinidamente… não adianta culpar a História… é preciso aprender com ela para simplesmente parar de se repetir…

São Sebastião – São Paulo Fevereiro de 2023

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* A enchente a que o poeta se refere é a ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 1966, que resultou em 250 mortos e mais de 50 mil desabrigados.
** A escolha de publicar a crônica do poeta se deu pelos volumes de chuva no Litoral de São Paulo em Fevereiro de 2023 onde choveu em 14 hs e 683 mm de chuva. O maior índice pluviométrico da História do país até aquela data.

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O Sequestro das Palavras

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Há momentos em que as palavras adormecem.
Calam-se, não conseguem dar as mãos para formar uma ciranda de sentidos, sentimentos, argumentos, convicções, ideias, utopias.
Seu silêncio faz-se tão alto que torna-se ensurdecedor e nos põe diante de nossa total incapacidade de com elas travar combate.

Fortes e destemidas as palavras nos auxiliam a pôr em trânsito nossas ideias e sentimentos mais profundos. São ferramentas que materializam o subjetivo que nos habita. São tijolos que constroem: de pensamentos a projetos, de sentimentos a desencantos.

Colocadas lado à lado e numa ciranda perfeita podem estimular e aglutinar pares, atrair sentimentos similares, fortalecer combalidos, dar esperança a desesperançados.
Mas quando elas parecem secar é como um deserto que nos toma. Nele apenas o desconforto das temperaturas, os ventos que mudam tudo de lugar e que possuem poderes de movimentar montanhas inteiras, soterrando e sufocando tudo o que está em seu caminho.

As palavras que enchem páginas com seus contornos de símbolos, sinais, formas e ideias são solicitadas em determinados momentos mais do que em outros.
Por exemplo, espera-se em geral, que transcorrido um ano inteiro e às vésperas do inicio de um novo ano expectativas e esperanças se renovem e encontrem ares para se expandir e contagiar. As palavras aqui deveriam ser veículo de estímulo e de esperança.

Mas especialmente no dia de hoje para mim é um dia de palavras silenciosas (disse isso em 1º de Janeiro de 2019, quando da posse do inominável jb e a repito hoje – 07 de Setembro de 2022 na data que deveria ser de comemoração do Bicentenário de nossa Independência).
A mente, aquela que constrói as palavras pressentia naquele momento tempos de tempestade e obscurantismo que permanecem ainda hoje em data que poderia ser uma celebração da nossa História. Temos ares que matam as palavras ou as fazem natimortas.

Nestes tempos, não há respeito ou apreciação pela palavra polida, límpida e lapidada. É um tempo de poucos recursos semânticos, de prazer na desconstrução de ideias, pessoas, reputações, com desprezo pelo diferente, divergente.
Tempos de ode à ignorância e ao pensamento fácil e populesco.
Um tempo onde símbolos são sequestrados e colocados num não lugar de representação e representatividade.

Mas, como nenhum movimento pode por si só extinguir o que é como rio, as palavras voltarão com certeza ante a diversidade.
É o inverno das palavras, que adormecerão aguardando a sua primavera para florir em grandes botões e explosão de cores. Estarão, nesta fase de hibernação, confortada por mais palavras, só que desta feita escrita por outros pares, outras mentes, outros arquitetos do saber. Armazenadas em relicários, que convencionamos chamar livros e que tornam-se fiéis depositários de séculos de pensamento humano e histórico.
É aí no conforto destas palavras que aguardarei as minhas.

Sei que símbolos são forjados e a História não se constrói numa data. Como as camadas que segmentam rochas a História vai se sobrepondo e sendo depositada, e com as palavras conseguimos construir seu caminhar através dos Tempos.

De pronto espero acontecimentos.
Não estou nem esperançosa, nem feliz.
Mas sei também que a História não é feita de um e nem de poucos, e com certeza ela permanecerá, por mais que se tente retirar dela significados, ideias, pessoas, símbolos. E nesta tarefa da permanência e imanência que as palavras garantem que a História se perpetue, para além de seus detratores.
O que direi portanto aos que como eu sentem-se expropriados de suas palavras?

Desejo que a aspereza dos dias mostrem caminhos criativos para que as mentes se libertem ainda mais. Que os pensamentos se fortaleçam e edifiquem com robustez para que as palavras não deixem de ser pensadas, ditas, escritas, disseminadas. Serão nossa fortaleza em tempos de crueza.

Enquanto as palavras não chegam e como forma de conforto, escolho encerrar com o canto que vem dos povos da floresta. São duas mulheres indígenas que nos oferecem essa maravilha: Djuena Tikuna e a Tainara Kambeba. Ouça, encante-se e emocione-se!

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A História por trás de uma Fotografia

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Uma fotografia representa sempre um recorte, um enfoque de algo que se quer destacar, na exata medida em que exclui o seu extraquadro. Uma fotografia é sempre o produto da intenção de um fotógrafo que nos dirige o olhar e nos aponta o que deseja pôr em relevo.

A maioria destes registros são compostos pela habilidade técnica de um especialista que se soma a um conjunto de oportunidades. O famoso: estar na hora certa, no lugar certo.

Fico fascinada com vários destes registros, pois congelam um momento que se tornará histórico para a posteridade e nos dará a exata sensação (ainda que irreal) de estarmos vivendo aquele momento e compondo com ele um registro que se cristaliza, muitas vezes nas nossa memórias, e até de toda uma sociedade ou geração. O poder de um registo iconográfico que alcança milhões e dá a todos estes o sentido de pertencimento é algo muito interessante.

O registro que escolhi para falar faz aniversário: foi em 5 de Março de 1960 que um dos retratos mais icônicos e mais reproduzido da história da fotografia foi tirado. O fotógrafo cubano conhecido como Alberto Korda (em verdade chamava-se Alberto Díaz Gutiérrez) produzia o retrato de Che Guevara intitulado posteriormente de “Guerrillero Heroico”. Um registro icônico, pois tornou-se símbolo cultural de toda uma época e que transcendeu em muito a luta socialista travada em Cuba naqueles anos.

Odiado por uns, admirado por outros esta imagem foi composta e recomposta de diferentes maneiras. Recortada, colorida, colada de diversas formas tornou-se botons, bandeiras, camisetas, canecas, banners, cartazes. Ganhou uma dimensão e um espaço no território do simbólico e tornou-se para muitos símbolo de resistência, idealismo, reverência, luta contra desigualdades e busca por justiça social. O registro fotográfico desta forma ganhou muitas camadas de significação e seu território de apropriações transitam por áreas culturais, ideológicas, sociais, politicas, antropológicas.

Da mesma forma e com a mesma voracidade é combatida, desprezada , insultada, ofendida e atacada por outros tantos.

E assim, o registro foi muito além de si próprio, e se tornou por meio de sucessivos compartilhamentos e usos uma forma de expressão.

Mas, como citado acima, nenhum registro sai de um vácuo obscuro. Ele próprio possui uma história, uma gênese. E é ela que abordaremos a seguir.

Um fotógrafo e sua obra

O momento do registro era uma solenidade realizada em memória de mais de 100 pessoas que haviam morrido em uma explosão de um cargueiro que havia partido da Bélgica em direção à Havana carregando 76 toneladas de armas e munições. O cargueiro chamava-se La Coubre.
Foram duas explosões com intervalo de mais ou menos 30 minutos, enquanto o cargueiro era descarregado.

Che Guevara estava em uma reunião no Instituto Nacional de Reforma Agrária, e como médico seguiu imediatamente para atender as vítimas.

Em pouco tempo ficou claro que havia sido um atendado patrocinado pelos EUA e que tinha um infiltrado que causou a “revolta”.

Durante a cerimônia no Cemitério Colón, o fotógrafo Korda (Havana, 1928 – Paris, 2001) se impressionou com o semblante de “implacabilidade absoluta” de Che Guevara, “cheio de pura raiva pelas mortes que ocorreram no dia anterior”. Descreveu o registro como sendo um “um instante de sorte”.
Em suas palavras:

Encontrava-me num plano mais baixo em relação à tribuna, com uma câmara fotográfica Leica de 9mm. Em primeiro plano estavam Fidel, Sartre e Simone de Beauvoir; Che estava parado atrás da tribuna. Houve um instante em que passou por um espaço vazio, estava numa posição mais frontal, e foi aí que em segundo plano emergiu a sua figura. Disparei. Em seguida, percebo que a imagem é quase um retrato, sem ninguém atrás. Volto a câmara na vertical e disparo segunda vez. Isto em menos de dez segundos. Che afasta-se então e não regressa aquele lugar. Foi uma casualidade…”

Fotógrafo oficial do jornal “Revolución” nesta ocasião Korda fez dois registros (uma foto horizontal e uma vertical, mas descartou a segunda porque sobressaia uma cabeça atrás do ombro de Guevara) que entretanto não foram utilizadas pelo jornal. Assim o famoso negativo permaneceu guardado por vários anos em meio a outros tantos registros, totalmente desconhecido pelo público em geral. Era apena mais um registro entre tantos do acervo pessoal do fotógrafo.

Korda e sua obra

Os negativos ficaram assim guardados até o ano de 1967, logo após a morte de Che Guevara, quando Korda cedeu os negativos gratuitamente para editor italiano Gianfranco Feltrinelli, que editou e espalhou as imagens em cartazes.

Um ano depois em 1968, o artista plástico irlandês Jim Fitzpatrick usou a fotografia para criar uma imagem em alto contraste e a registrou em domínio público com autorização do autor.
Nas palavras de Fitzpatrick:

“Fiz alguns pôsteres dela, mas o que importa, o preto e vermelho que é familiar para todos, o mais emblemático, esse foi feito após o assassinato e a execução (de Che) como prisioneiro de guerra, para uma exibição em Londres chamada Viva Che. O Che é muito simples. É um desenho em preto e branco ao qual acrescentei o vermelho. A estrela foi pintada à mão de vermelho. Graficamente é muito intenso e direto, é imediato, e é isso que gosto nele”, revelou Fitzpatrick.

Assim a imagem de Korda ganhou o mundo.

A partir deste momento este registro ganhou uma dimensão impensada até então, transformando-se em uma das maiores referências culturais e visuais da história contemporânea. Alguns chegando a cravar que seria uma espécie de ‘Mona Lisa’ do século XX.

Com isso, o registro ganhou nome de batismo e atravessou os muros do seu próprio contexto de produção.

O “Guerrillero Heroico” ganhou status revolucionário que despertava ao mesmo tempo amor e ódio, usos e abusos. E absolutamente conheceu estampas em diferentes objetos, suportes, campanhas para diferentes produtos, foi até inspiração para serigrafias de Andy Warhol e foi mimetizada em capa de álbum da Madonna.

Com direitos de uso de imagem doados por Korda a imagem não conheceu limites e se tornou para sempre uma referência no imaginário de todos: apoiadores ou detratores de todo o seu ideário revolucionário.

Para a pesquisadora Maria-Carolina Cambre: “o Guerrillero Heroico está sempre em movimento, passa pelo reino do simbólico ao sintomático e oscilante entre esses tipos de classificações, enquanto rejeita esses tipos de quadros. Em outras palavras, a força do apelo de Guerrilheiro Heroico quebra o quadro”.
Em sua perspectiva, “enquanto as indústrias da moda trabalham para diluir o poder simbólico da foto e despolitizá-la, outros a reinvestem com significados emancipatórios e políticos”.
“A imagem de Che Guevara representa mais do que apenas um rosto. É uma imagem que se tornou um símbolo e assumiu diferentes funções sociais, culturais e políticas. Foi reverenciado, desprezado ou realizado em procissões”, relatou a pesquisadora.

Pesquisadora Maria-Carolina Cambre

Todos estes usos só foram possíveis a partir da perspectiva de Korda sobre tais usos.
Falando sobre os motivos que o levaram a nunca cobrar direitos sobre o uso da imagem, respondeu em entrevista ao jornal australiano Herald Sun:

Como defensor dos ideais pelos quais Che Guevara morreu, não sou avesso à sua reprodução por aqueles que desejam propagar sua memória e a causa da justiça social em todo o mundo, mas sou categoricamente contra a exploração da imagem de Che pela promoção de produtos como álcool ou para qualquer finalidade que denigra a reputação do Che”.

Che Guevara tinha na época deste registro 31 anos de idade, o que trazia ao registro imagético uma força e beleza própria da idade. Mas havia mais: sua personalidade carismática imprimia ao registro muito mais elementos. O retrato, portanto, o transcendeu e se transformou em algo muito maior do que ele mesmo era como pessoa física. Tornou-se um símbolo.
É portanto, icônica neste sentido.

Como conclui a pesquisadora citada acima:


Não estamos mais falando de alguém se apropriando da imagem de Che para fazer alguma coisa. Em vez disso — em nossa cultura recortada e colada de compartilhamento contínuo de sinais — podemos dizer que o rosto de Guevara se tornou uma interface coletiva e um canal de expressão”.

_________________
* Referências:
Os bastidores da lendária fotografia que eternizou Che Guevara
Fio produzido pelo perfil @historia_pensar
IFotoChanel – O maior Portal de Fotografia
Rezende, Eliana Almeida de Souza. ”Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. An. mus. paul. [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-47142007000100003 
____________________________. “OLHARES SOBRE O TEJO: Benoliel, o fotógrafo de Lisboa

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♫ ♪ ♫ Tomara que chova…3 dias sem parar ♫ ♪ ♫

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Começo de ano sempre é tempo de Carnaval. Às vezes, pedimos coisas que quando os deuses nos ouvem há trabalho de montão.

Emilinha Borba fez uma das marchinhas mais cantadas nos carnavais de velhos tempos. Quer ouvir?

1950 – Emilinha Borba – Tomara Que Chova

♫ ♪ ♫

Tomara que chova

Tomara que chova
Três dias sem parar
Tomara que chova
Três dias sem parar

A minha grande mágoa
É lá em casa
Não ter água
Eu preciso me lavar

De promessa eu ando cheio
Quando eu conto a minha vida
Ninguém quer acreditar
Trabalho não me cansa
O que cansa é pensar
Que lá em casa não tem água
Nem pra cozinhar

Tomara que chova
Três dias sem parar
Tomara que chova
Três dias sem parar

A minha grande mágoa
É lá em casa
Não ter água
Eu preciso me lavar

De promessa eu ando cheio
Quando eu conto a minha vida
Ninguém quer acreditar

Trabalho não me cansa
O que cansa é pensar
Que lá em casa não tem água
Nem pra cozinhar

♫ ♪ ♫

Ás vezes no calorzão pedimos que venha a chuva… e no canto de Emilinha pedimos que seja como diz o refrão:

♫ ♪ ♫ Tomara que chova…3 dias sem parar ♫ ♪ ♫

Mas aí penso que não vai dar!
O que fazer com tanta água querendo entrar?
São as ruas que se enchem e ninguém podendo andar.
Jogado daqui pra lá é o lixo que insiste em voltar.

É tanto sofá, tanto colchão flutuando na correnteza e eu sem lugar seco para deitar.
Embalagens, frascos, latas flutuam num passeio de vai e vem.
E eu aqui parada tentando me salvar!
O gato já se foi, correndo para não se afogar.
Em meio a tanto entulho, frutas e legumes dançam desordenadas em meio a água das cheias que as teimam carregar.

A compra do mês embolorou e a roupa estragou.
Com tanta água suja nada se salvou.
Ir trabalhar não vai dar não: o transporte não vai funcionar.
O ônibus não vai chegar, o metrô vai parar e o trem vai encrencar.
Os carnês ainda estarão molhados quando for pagar, mesmo que a geladeira e o fogão tenham saído para boiar.

Agora é esperar toda água abaixar.
Tem muita lama para arrastar, e o que sobrou para limpar.
E torcer para que na próxima menos lama venha me encontrar.

Tanta água na rua e a minha torneira seca sem pingar!
Sem água para beber, para limpar, ou cozinhar.
Em breve vai chegar minha conta d’água para pagar.
É certeza que irão me acusar de ter gasto toda a água que ainda vai faltar!

Pensando bem, talvez seja melhor não chover 3 dias sem parar!

_______________
* Post atualizado de texto publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A maior metrópole do Brasil é famosa por seus congestionamentos que em determinados dias chegam a mais 350 Km. Um fato que não é novo e que revela uma cidade pulsante, com um ritmo acelerado.
Em dias recentes um debate intenso se colocou quando o Prefeito da cidade decidiu para o bem da diminuição de acidentes reduzir a velocidade nas marginais. Em pouquíssimo tempo uma onda de descontentamento se fez.

Em verdade, a cidade sempre conviveu com muitos e graves acidentes. A maioria quando ainda eram usadas apenas carroças.

Viaje comigo pelo tempo e percorra esta Pauliceia, que desde sempre parecia aos seus moradores como completamente desvairada:

Tal como outras capitais do mundo em fins do século XIX e nos princípios do século XX, São Paulo também via sua vida urbana crescer e se modificar. Assistia atônita uma gama imensa de transformações nos hábitos de vida, modos de produção e formas de deslocamentos e adensamento populacional.

As ruas da Pauliceia encontrava por parte dos que a administravam problemas de todas as ordens e constantemente eram alvo de acalorados discursos realizados na Câmara Municipal ou mesmo na imprensa diária, onde os problemas urbanos ganhavam o tom de reivindicações populares ou mesmo de críticas aos poderes constituídos.

São Paulo convivia com um aumento indiscriminado de sua população. Tal aumento, originário desde os tempos logo após a abolição da escravatura – que lançou nas ruas escravos forros e libertos – ao mesmo tempo recebia nas mesmas ruas aqueles que iriam prosseguir realizando o trabalho dos escravos: que eram imigrantes. Os italianos chegaram inicialmente, seguidos de outras etnias e nacionalidades que chegavam em levas da Europa.

Com tantos circulando pelas ruas da cidade o burburinho aumentava, e o ritmo de vida se acelerava, gerando cada vez mais políticas que visavam regulamentar os espaços, gestos e modos de viver a urbanidade, eram denominados códigos de postura. Temas como o trânsito e o barulho na cidade eram tratados periodicamente, e em muitos casos, era patente a tentativa de inclusão do maior número possível de situações passíveis de punição e regulamentação.

Os sons que vinham desta vida urbana eram muitos e variados. Daí que os que estavam interessados em elencá-los tinham lá uma tarefa bem grande. A imprensa em geral colaborava neste sentido, e com certa frequência publicava artigos como o Dr. J. M. de Azevedo Marques, intitulado “A tranquilidade publica perante a Municipalidade”, onde o autor fazia menção a alguns destes sons da vida urbana:

(…) Há dias passados um illustre scientista extrangeiro queixava-se, pela imprensa, com razăo e escarneo, de ser S. Paulo uma cidade insupportavelmente barulhente alludindo ao ruido exaggerado dos bondes, dos automoveis, dos sinos, dos vendedores de jornaes, dos caixeiros de cafés, da cachorrada a uivar, dos pregoeiros ambulantes ensurdecendo, atordoando, causando mau humor, impedindo o repouso, socego, a saude e o trabalho.

(…) Que diferença contra nós, si compararmos isso com o que vimos nas cidades mais agitadas do velho mundo: Londres, Paris, Berlim Bruxelas, Lucerna, Genebra, Vichy (…), onde tudo se passa calmamente, em relativo silencio: os vehiculos năo incommodam pelos ruidos, os sinos săo raros e commedidos, os automoveis fazem “chic” em năo buzinar, ninguem grita, năo há guizos estridentes; e por isso, alli se pode conversar nas ruas, nos cafés, nos vehiculos, nos escriptorios, como se pode repousar, dormir, viver.
(…) Aqui impossível. (…)”[1]

Como sempre a comparação depreciativa tomava como parâmetro o Velho Continente (modelo buscado como referência de civilidade). O articulista ocupa-se de tecer as comparações procurando mostrar quão distante São Paulo estava de cidades e civilizações europeias.

Alguns destes sons vinham de diferentes meios de transporte, personagens urbanos, ambulantes e seus pregões, feitos para chamar atenção ao seu trabalho, ou mesmo de animais que trafegavam soltos por ruas, ruelas e avenidas.

Dentre os instrumentos mais comuns estavam entre outros: o uso de sinos, campainhas além da própria voz do mercador em portas de teatros, praças, e mesmo de porta em porta.

AV. XV de Novembro, São Paulo – década de 1920

O artigo prosseguia em sua minuciosa descrição e se tornava interessante quando se referindo ao trânsito, relacionava a convivência com determinados aspectos do comportamento urbano com a ausência de moral. Ou seja, quanto mais imoral e próximo da barbárie a desqualificação moral mais suscetível ao hábito de sons que perturbavam a ordem alheia. Observe:

“(…) Há é certo, uma parte do povo que se não incommoda com tudo isso; são os insensíveis, os pandegos, os endurecidos e, podiamos dizer, os idiotas, cujas funcções meramente physiologicas e impertubaveis predominam sempre sobre as moraes; comem e bebem sempre bem, dormem sempre bem, riem sempre bem, vagam sempre bem, passam sempre bem, como si o mundo fora só elles. Mas essa minoria de “homens-vegetaes” não merece dictar regras ou servir de padrão aos outros, ás senhoras, ás crianças, aos velhos, aos doentes, aos trabalhadores, aos estudiosos aos sensiveis, aos civilizados. (…)”[2] 

Ritmos e deslocamentos: a cidade veloz

Este mesmo trânsito, considerado caótico, era o centro de duras críticas e revelava um articulista preocupado. Referindo-se ao barulho e a forma descuidada que muitos veículos eram conduzidos e os resultados em números de acidentes, acrescentava:

“(…) A norma –  “é gritar e matar” – o bonde dispara, tocando os tympanos em selvagem Ze-Pereira, e vai esbarrando e esmagando, haja o que houver; o automovel faz a mesma cousa: e assim substitui-se a pericia pelo barulho, entendendo os heróes conductores que buzinando e badalando podem matar livres de culpa e pena. (…)”[3]

Os registros de acidentes de trânsito eram muitos e variados, incluindo batidas de automóveis em outros veículos, em postes ou em outras formas de obstáculos, bondes que se chocavam ou saíam dos trilhos, e atropelamentos – em geral, eram a maioria das ocorrências policiais. Saber sobre tais registros também nos fornecem ao mesmo tempo sobre esta cidade. Relava que havia um número crescente de pessoas circulando pelas ruas e experimentando uma nova forma de vivência: relacionada aos ritmos da velocidade e das deslocações pelo espaço social. Algo que até então não era possível sem as invenções como automóveis, bondes e trens. A convivência com a maior velocidade era algo intrigante, pois se de um lado favorecia deslocamentos para lugares impensáveis em curto espaço de tempo, por outro lado, mostrava que ainda era difícil lidar com atropelamentos, descidas acidentadas de bondes e mesmo dividir o espaço da rua com pedestres, cavalos, carroças, carros, bondes e condutores.

Bonde 41 saiu dos trilhos na rua Carandaí, esquina com a antiga rua Inhaúma, entrando no terreno da Sociedade Amigos da Casa Verde

Os relatos de tais ocorrências em vários casos transformavam-se em inquéritos policiais redigidos por delegados responsáveis nas diferentes circunscrições, tornava-se uma espécie de crônica policial sobre os problemas relacionados ao trânsito da cidade. Uma leitura atenta destes registros nos ajuda a perceber como esta cidade se movimentava e se relacionava com seu entorno, ao mesmo tempo que novos hábitos se instalavam.

Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição em São Paulo, é um destes que chamo de ‘cronistas policiais’. Sua escrita miúda, recheada de pequenos detalhes ajuda a dar cor e tom às impressões de uma autoridade sobre diferentes infrações ocorridas no espaço da cidade, tentando da melhor forma encontrar argumentos que viessem convencer de culpa ou absolvição as partes envolvidas. São relatos envolvendo crimes de diferentes ordens, em especial os que são relacionados a moral e bons costumes (inserem-se aí os crimes de vadiagem, prostituição, jogo, defloramentos, homicídios, entre outros) além claro, das infrações de trânsito.

Citando algumas destas infrações, o delegado Carlos Pimenta comenta sobre os atropelamentos e a forma considerada descuidada de motorneiros e passageiros conduzirem e se portarem nos veículos que transitavam pela cidade:

“(…) Trata este inquerito da eterna questão dos atropellamentos por vehiculos. Enquanto tivermos leis benignas para o caso, os taes senhores condutores, chaffeurs e cocheiros andarão sempre sem o necessario cuidado, á matroca, a catar as pernas de um pobre mortal, ou mandal-o sem demora para outro mundo (…)”[4]

No caso específico deste inquérito, Carlos Pimenta retomava a questão da ausência de uma lei de trânsito que viesse atender de perto a necessidade de punir eficientemente infratores perigosos. A tônica sobre as leis de trânsito era constante, e em sua fala mais de uma oportunidade retomava este tema, em especial em relação ao número elevado de acidentes envolvendo atropelamentos e/ou imprudência da parte de motorneiros, condutores, passageiros e pedestres.
São os casos, por exemplo, dos seguintes inquéritos:

1)      “(…) É um eterno problema a questão de desastre por automoveis e dia a dia os atropelamentos vão crescendo de modo assustador. Este inquérito trata de mais um, cuja victima é o menor Antonio de Toledo, com 6 annos de idade (…) O automovel que apanhou o menor tinha o nº 2950 e (…) o auto caminhava com marcha acelerada e com pharóes apagados (…)”[5]

2)     “(…) O veso antigo de todos os conductores de vehiculos, nesta Capital, andarem em vertiginosa carreira, procurando a morte para si e para os outros, é coisa que lhes póde tirar. São multados, processados, castigados, afinal dentro de nossas benignas leis e dos nossos liberrimos regulamentos. Mas a attração, a sympatia pela vertigem de corrêr é inevitável. (…) Devido a essa loucura, ou melhor, essa falta de prudencia, este inquerito registra um desastre desta natureza. No dia 10 do corrente, Segunda feira, ás 21 horas, o bonde de passageiros nº 423, na linha Tamandaré, tendo como conductor Abilio Pires, chapa nº 476 e como motorneiro Manoel de Moraes, chapa nº 877, ao fazer a curva da rua Castro Alves para entrar na rua acima referida, por imprudencia absoluta do alludido motorneiro, saltou dos trilhos, subindo no passeio, ficando as primeiras rodas sobre o mesmo (…)”[6]

Carlos Pimenta se coloca como mais um dos que criticavam as leis em vigência na capital e a forma considerada branda de tratamento dos infratores em geral. Em diferentes circunstâncias se refere às leis de trânsito como sendo benignas demais para serem respeitadas.

Além da velocidade e descuido dos condutores de veículos, os inquéritos nos fazem saber sobre a imprudência cometida pelos que trafegavam nas ruas. Um destes refere-se especificamente a distração e ao hábito sempre corrente de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento:

“(…) ás 21 horas, João Rebulhedo, que guiava o automovel nº 4016 pela Avenida Brigadeiro Luiz Antonio com destino á Avenida Paulista, seguia atraz de um bond da linha Paraizo quando, perto da rua Conselheiro Ramalho, o conductor Daniel Paes, que se achava de folga viajando neste bond, ao descer delle, em movimento, foi apanhar e ferir este conductor (…)

(…) João Rebulhedo explica em suas declarações que seguia o bond numa distancia de dois metros quando, inesperadamente, saltou delle esse conductor de folga. Sem tempo de evitar o desastre, pois Daniel, ao descer, lhe passou á frente – conseguiu ainda evitar sua morte, com a monobra rapida que fez. (…)”[7]

A prática de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento, além da travessia imprudente de pedestres acabaria por levar diferentes propostas à Câmara de vereadores de São Paulo sobre a aplicação de multas. Dentre alguns destes projetos temos, por exemplo:

“(…) Não existe, entre nós, a regulamentação do transito de pedestres. Essa falha é absurda, tanto quanto, no meu entender, essa regulamentação é o ponto de partida para uma boa legislação que venha resolver esse problema. (…) em Londres, (…) qualquer pessoa que atravessar uma rua em momento improprio, não pagará sómente multa; será presa immediatamente.E, si essa imprudencia der origem a um desastre, responderá pela parte dos dannos que provocar (…)”[8]

Abaixo uma imagem no Largo de São Bento, onde é nítido o movimento de subir e descer dos passageiros com os bondes em movimento. Além disso, transeuntes, carros e bondes compartilham o mesmo espaço exíguo, gerando aos pedestres inúmeras chances de atropelamentos quer por um quer por outro.

Bonde elétrico aberto no Largo de São Bento, na capital paulista, por volta de 1930, circulando na linha de São Caetano (criada em 1902 e extinta em 1942)

NO calor das discussões diferentes sugestões surgiam para um problema que não conseguiu no decorrer do tempo uma solução satisfatória.
Prova disso é que já estamos no século XXI e enfrentamos praticamente as mesmas questões, criticas e ponderações.

Destas ocorrências há diferentes registros fotográficos detalhados pela perícia técnica e interessante quanto ao fornecimento dos tipos de acidentes[9], ruas de maiores incidências, e assim por diante.
As imagens tomadas como documentação para incorporar o inquérito revelavam em detalhes a forma como o acidente havia ocorrido: em alguns casos, estas fotografias recebiam anotações em vermelho indicando a trajetória do veículo até encontrar o seu destino contra um poste, um muro ou mesmo outro veículo. As rotinas de acidentes acabaram por instituir uma prática de registros fotográficos para os acidentes que ocorriam pela cidade e revelam mais uma aplicação da fotografia para fins comprobatórios e jurídicos. 

Acidente com o bonde Casa Verde – Penha (55) na rua Japuiba com rua Anhauma (atual rua Antônio Lopes Marin com rua Dr. César Castiglioni Júnior

A lei determinava as velocidades máximas dos veículos motorizados.

Nos termos da lei: “(…) no perímetro central, em ruas e horas de grande transito, dez quilometros e nas demais, vinte quilometros, no perimetro urbano, trinta quilometros e, no suburbano, quarenta quilometros (…)”]10

As velocidades acima descritas procuravam através de uma regulamentação criar formas de diminuir os problemas ligados às altas velocidades dos carros, como batidas e atropelamentos muito correntes no período. Os espaços de regulação e tráfego colocaram à cidade muitos debates e o consenso nunca foi obtido. 

Distantes no tempo e próximos na dificuldade, temos a Prefeitura de São Paulo sempre alterando limites de velocidade nas marginais alegando exatamente os mesmos problemas de mais de um século atrás: excesso de velocidade, acidentes e atropelamentos. 

De fato, uma relação de poderes e fascínios entre homens, máquinas e leis. Nem sempre conseguem andar juntas e em benefícios de todos. 

*
Post extraído de minha Tese de Doutorado, intitulada: “Imagens de cidade : cliches em foco… São Paulo e Lisboa (1900-1928)“, defendida na UNICAMP, em 2002.

** Referências:
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. Anais do Museu Paulista [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. 

***Notas Bibliográficas:

[1] Marques, J. M. Azevedo. “A tranquillidade publica perante a Municipalidade”. In: Jornal O Commércio de S. Paulo, 29/04/1914.[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] Inquérito redigido por Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição de São Paulo, em 16.08.1922.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Inquérito redigido por Armando Soares Cayuby, Delegado da 6ª circunscrição, em 08.02.1922
[8] Projecto nº 3, de 1924. Coleção Actos e Decretos do Municipio.
[9] Os registros fazem parte da coleção existente nos Arquivos do Museu do Crime, da Academia da Civil  de São Paulo.  
[10]  Lei nº 2.264, de 13 de Fevereiro de 1920. Coleção Actos e Decretos do Municipio.

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Importância do Rigor Metodológico e Conceitual em Memória Institucional

Por: Eliana Rezende Bethancourt 

À guisa de uma introdução:

A escrita coloca a quem escreve, o desafio de ponderar palavras e elaborar conexões de sentido. Diante disso, um esclarecimento: minha fala pauta-se a partir da observação que venho fazendo em relação ao oferecimento de cursos e outras formas de capacitação e/ou consultorias que tem proliferado nas redes, até propiciada pelos recursos online aos quais temos acesso. 

Uma tempestade perfeita se formou onde de um lado, temos a tecnologia acessível, e de outro pessoas disponíveis com tempo ou recursos, querendo realizar cursos e aperfeiçoamentos, ou demandas que necessitam de uma consultoria ou assessoria técnica. Engana-se aquele que acredita que, por ser uma capacitação ou consultoria, esta deva ser desprovida de rigor, e que qualquer coisa poderia ser aceita, já que são poucas horas destinadas a ela.

Os pilares que sustentam, e que firmam toda uma carreira, assentam-se obrigatoriamente na formação teórica, acadêmica e no rigor metodológico. São pilares que prezo e persigo tanto em mim, quanto no meu trabalho, meus alunos e nos profissionais que me cercam, ou nos clientes que me procuram.

Em geral, e até por uma demanda que chamamos de coerência, este rigor Conceitual e Metodológico devem ser acompanhado por ações profissionais que os sustentem. A seriedade imposta deve ser ainda mais rigorosa quando nos dispomos a ensinar ou a desenvolver um trabalho que repercutirá numa comunidade ou organização (seja ela qual for). A docência e o profissionalismo em áreas de conhecimento técnico é um compromisso público e ético com a área em que atuamos e com aqueles com quem compartilhamos nossos conhecimentos ou experiências.

Colocando uma lupa

Como é óbvio, não é possível cobrir todas as formas de capacitações ou consultorias e assessorias técnicas em diferentes áreas. Portanto, me aterei a minha área específica de atuação acadêmica e profissional que é a Gestão de Informação e a Memória Institucional. Leitores de outras áreas podem tirar proveito do que escrevi pensando em conexões com suas áreas especificas de formação e/ou atuação.
Meu debate procura reforçar a noção de que em todas as áreas há os que se esmeram em Conceituação e Método aplicáveis à sua prática profissional. Mas há também os que consideram isso supérfluo e até desnecessário, por considerarem que o que importa é mesmo a cifra ao término e ao cabo. Para estes últimos não há a preocupação, pois consideram que os demandantes pouco sabem e por isso tanto faz.

No decurso de minha experiência, e por diferentes vezes, me defronto com cursos ou consultorias oferecidas que pecam exatamente pela falta de compromisso ético com o rigor e a qualidade do que se oferece. Em alguns casos, tais cursos ou consultorias apresentam fragilidades conceituais, técnicas, metodológicas e chegam a ser oferecidos de uma forma mercadológica, onde preços e certificados são oferecidos e suas entregas muitas vezes, à domicilio!

Consigo compreender que existam, na livre concorrência e nas leis de mercado, sistemas mercadológicos tais como os descritos acima e que também existam alguns profissionais que se submetam a isso. O que definitivamente não sou capaz de aceitar são fragilidades conceituais e muitas vezes grandes equívocos propiciados pela tábula rasa da ausência de consistência teórica e intelectual sendo oferecidas como vantagem e capacitação.

Exemplo neste sentido é a área de Gestão Documental, por excelência uma área multidisciplinar, e isto lhe dá como característica predominante a possibilidade de trocas e experiências com diferentes saberes. Mas simplesmente não pode ser confundida e colocada de uma forma como se tudo pudesse estar junto e misturado, sem um detido e aprofundado estudo dos diferentes conceitos que a compõe.

Dentre eles cito os que são mais gritantes e perceptíveis na área que atuo: Memória Institucional, Gestão Documental, Processos Híbridos (microfilmagem e digitalização) e célebres frases indevidas e erradas como: “arquivos inativos”, “arquivos mortos”, ou afirmar que Arquivo seja Memória Institucional e que GED é Gestão Documental. Usual é também considerar que Informação possa ser tomada como Conhecimento. Algo impensável, já que Conhecimento representa uma a informação processada e transformada em experiência pessoal e intrasferível.

Pode ficar ainda pior quando técnicas são confundidas, como por exemplo, não saber diferenciar storytelling, depoimento, história de vida ou entrevista e de como estes poderiam ser realizados em um Projeto de Memória Institucional.
Ou não ser capaz de entender como a Memória Institucional acaba sendo uma parte importante do que seja a Memória Social, e que esta definitivamente tem que ver com Tabelas de Temporalidade Documental, e NUNCA com colecionismo ou escolhas que compõe uma lógica que está há anos-luz de ser um Método adequado. Coloco propositalmente temas que se tocam, mas são de áreas diversas e possuem concepções teóricas e metodológicas diversas, não porque seja errada a interdisciplinaridade, mas sim a incapacidade por parte de alguns de transitar por todas estas áreas sem praticar alguns equívocos conceituais.

Infelizmente tenho visto muitos confundirem Linhas de Tempo e “relíquias institucionais” com Memória Institucional e com História.
Em outros casos, vejo Memória Institucional ser confundida com Arquivo. Apesar dos arquivos fornecerem subsídios para que se possa chegar ao que denominamos Memória Institucional, Arquivo NÃO é Memória Institucional. Assim como Memória Institucional NÃO significa uma cronologia composta a partir da produção de documentos, como querem alguns arquivistas.
Alguns usam a expressão “resgate de Memória“, como se esta fosse uma ‘entidade’ a ser buscada em alguma parte, para ser embalada e mostrada como produto. Esquecem-se ou simplesmente não sabem que a Memória é forjada no território social, que é constituída a partir da História e que esta não existe à priori: é uma construção subjetiva a partir de um determinado ponto de vista e/ou repertório, em última instância é forjada a partir de relações sociais complexas e que possuem diferentes vetores.

O “equívoco” é grave quando se supõe que a partir de escolhas realizadas por áreas de Comunicação ou Marketing se acumulem documentos e objetos para formar o que chamam de Memória Empresarial ou Museu. Cabe sempre lembrar que documentos NÃO nascem para ser isso ou aquilo. São produzidos no âmbito de FUNÇÕES desempenhadas por pessoas ou organizações e por isso, a escolha aleatória por terceiros não passa em grande parte de achismos e de reunião de objetos e coisas que poderiam bem compor um “gabinete de curiosidades”. Decidir por critérios outros que este ou aquele documento ou objeto é histórico é, em grande parte um erro que não se sustenta por rigor teórico e metodológico. Ainda que se faça esta ou aquela pesquisa denominada histórica, esta está longe de ser rigorosa. Representa apenas uma forma de maquiar e dar lastro à coleção reunida por objetos e eventuais ditos documentos.

São portanto, equívocos cometidos em série e que atinge de morte áreas como a Arquivologia e a História.
Há também equívocos que consideram que a produção de documentos arquivísticos da Administração Direta e Indireta de Órgãos Públicos são Memória Institucional, o que NÃO é real. A Memória Institucional é uma construção e não fruto apenas de Tabelas de Temporalidade (apesar destes documentos ser utilizados como fontes). Ainda dentro desta mesma esfera e no campo da Administração Pública, os documentos permanentes (que são os de valor histórico) devem cumprir seus prazos legais como tais. Poderão ser utilizados como fonte histórica, mas NUNCA ser subtraídos dos conjuntos documentais de que são parte. Aqui temos um exemplo bem acabado do seja teoria e metodologia aplicáveis à diferentes áreas e que possuem em comum um conjunto documental. Uma área NUNCA poderá prescindir da outra ou suplantá-la.

Também NÃO é Memória Institucional elaborar Linhas do Tempo ou escrever textos bonitinhos para integrar livros comemorativos ou mesmo exposições. Não é também colecionar imagens num álbum de fotos antigas, ou fazer colagens de ‘curiosidades’. Reduzir o trabalho a isso significa oferecer “perfumarias” desprovidas do que seja o verdadeiro significado da Memória Institucional. É preciso ir muito além disso. Como repito constantemente: a Memória Institucional não é um produto em si. É sim, meio para fortalecer a Identidade e Cultura Organizacional. É favorecer a produção de Conhecimento e Inovação dentro das organizações além de ser importante na valorização do Capital Intelectual nas organizações.

São tão graves esses equívocos que, colocar tais termos em cursos ou consultorias oferecidas, mostra à partida quão grave e preocupante é a qualidade do que se abordará! Quem se propuser a ir por esta seara deverá estar firmemente embasado por 4 áreas, talvez 5: Arquivologia, História, Tecnologia, Biblioteconomia e Gestão. Sendo a História a mais complexa e com maior rigor de leituras e metodologia. As demais áreas são técnicas e de aplicação. Diante disso, conceitos caros à História como Memória, Identidade, Sociedade, Cultura, etc, devem ser tratados a fundo e muito bem fundamentados. Utilizar tais conceitos sem conhecimento de causa é pelo menos uma temeridade.

Vejo a multidisciplinaridade como meio eficaz de aprendermos e nos esmerarmos com o aprendizado e nunca, nem que seja por um minuto sequer apropriar-nos de forma errada, equivocada ou despretensiosa de uma área tão grande de conhecimento.

Não aceitem ser ludibriados! Solicito que tenham atenção. Verifiquem, analisem, peçam indicação.

Um diagnóstico preliminar
A formação profissional, metodológica e técnica é algo sério e todos devemos zelar por isso! Se não souber avaliar, peça ajuda de quem saiba! Não temos que saber tudo sobre tudo, mas temos o dever de esclarecer quando houver problemas graves.

Um equívoco custa caro ao seu emitente, mas pode ser muito mais caro ao consumidor do mesmo! Exatamente por preocupar-me com os que buscam o saber é que estou me posicionando. Os discentes ou clientes muitas vezes, não possuem ferramentas para discernir, às vezes são jovens demais, inexperientes e oriundos de outras áreas. Por isso, temos que nos colocar e esclarecer quando possível quando detectamos tais problemas.

Acho que é um misto de várias coisas, em especial para os casos de cursos para que tais problemas ocorram.
De um lado, há uma busca de ter sempre na prateleira alguma coisa de consumo rápido e raso… sem grandes compromissos ou aprofundamentos. Este uso é comum, e temos casos de conteúdos ficarem ali sendo “fornecidos” por anos à fio. Já vi casos que os docentes morreram e o conteúdo permanece ali disponível. Isto em geral ocorre com modalidades em formado EaD previamente gravados, ou mais recentemente em formatos de conteúdos online. Estes obedecem uma lógica de oferecer ao maior número possível de pessoas o mínimo sobre algum tema. Com isto possuem um atrativo simples: custos módicos, certificados rápidos e a fantasia de capacitação.

Em outros casos, pode haver má fé: pessoas apropriando-se de ideias e proposições de outros e tentam costurar algo que sirva à vários “corpos”.

E numa que talvez seja a forma mais grave, que é a falta de cabedal e sustentação intelectual e conceitual que compromete a formação de outros. Considero essa a forma mais grave pois quando ensinamos estamos nos comprometendo com a ética da partilha de Conhecimento, mas este deve assentar-se de forma sólida numa formação devida. Nunca poderá ser aceitável uma pessoa que não seja de determinada área ser irresponsável de abarcar saberes que desconhece, ou que os saiba apenas de superfície. O que digo, é que não há problema algum em visitar áreas afins, beber e constituir perspectivas para atuação pessoal e profissional. Mas nunca apropriar-se indevida e equivocadamente daquilo que não sabe só como forma de tornar palatável a venda de um produto ou serviço (no caso aqui me refiro a cursos de capacitação e/ou consultorias).

Talvez o maior remédio que temos contra isso é que as pessoas aprendam a selecionar.

Creio que muitos espaços são indevidamente ocupados exatamente porque os que o deveriam fazer isso deixam as brechas.

Uma torre fortificada numa Ilha da Fantasia

Cito como exemplo, a minha área – as Ciência Humanas -, que é também território de aplicabilidade e prática e infelizmente muitos acham que só são profissionais se estiverem na academia… deixam com isso, espaços que poderiam ser seus na sociedade, em empresas e instituições, para serem ocupados por profissionais que possuem talvez boa vontade mas lhes falta consistência, aprofundamento e na maioria das vezes, leituras da formação.
Seria interessante que os profissionais se desencastelassem da academia e fossem ao mundo real atuar de forma aplicada quer ministrando capacitações, quer prestando assessorias técnicas ou consultorias!
A sociedade ganharia muito!

O fato a que me refiro é de que muitos profissionais encastelam-se em suas “fortalezas” intelectuais: produzindo apenas para seus pares e deixam de alcançar o cerne da sociedade. Mas creio que discursos esvaziam-se quando ficamos em discussões epistemológicas, conceituais ou de especialidades sem o pé na realidade. Aí o que temos é apenas, e tão somente, conteúdos que massageiam egos e inflam vaidades.

Preocupo-me muitíssimo, e aí falo dentro da minha área de atuação (sou historiadora, de graduação à pós-doc), que exista essa cisão de que o profissional de gabinete quase nunca saiu de sua zona de conforto e em muitos casos, não conhece as demandas de mercado e das instituições que não sejam as acadêmicas. Sabe pouco sobre a aplicação de tantos conhecimentos discutidos apenas na academia em um formato teórico. A metáfora que gosto de usar é a da Ilha da Fantasia. Alguns intelectuais ficam apenas dentro da academia, numa bolha que não o coloca no confronto direto com as demandas da realidade. Seria muito interessante que tais intelectuais pegassem seus barquinhos e fossem ao continente para ver o que se passa. Voltariam com outros olhares para a sua pequena ilha.

O inverso também é verdadeiro. Alguns saem da Ilha, vão ao Continente e NUNCA mais retornam à sua origem. Ou seja, afastam-se do rigor que é tão caro e necessário na Academia. Acredito sinceramente que o profissional do século XXI precisa e deve trafegar entre a ilha e o continente e saber levar de cada um o que há de melhor. Este seria o melhor dos mundos.

A História durante toda sua existência, e com especial força durante todo o século XIX, lutou para instituir-se e figurar como Área de Conhecimento. São discussões longas, cujos iniciadores não viveram para ver o final. Mas é muito importante que as aproximações feitas entre áreas diversas representem um esforço sério de embasamento teórico, metodológico e técnico (quando for o caso).

Arquivologia e Biblioteconomia iniciaram essas discussões ainda há pouco e há também as Ciências da Informação, que reivindicam um outro espaço de ocupação, o que indica uma longa e árdua discussão em campos teóricos e epistemológicos não cabíveis de fato ao espaço deste artigo.

Uma proposição
Acho que deve haver a busca do caminho do meio: há sim discussões teóricas, metodológicas e epistemológicas no universo de constituição e aplicação desses saberes, mas há também um território de aplicabilidade que não se encontra na academia e que nem por isso deva ser feito de forma pouco consistente. Um não deve servir de impedimento ao outro. A responsabilidade fica assim na mão de profissionais que devem estar inteirados, atualizados, preocupados e responsavelmente determinados a aplicar os mesmos em suas respectivas áreas de atuação.

Considero que estes equívocos ocorrem exatamente porque muitos profissionais de academia não assumem seu papel de agentes no âmbito social e fornecem as brechas para que profissionais sem muitos escrúpulos mascateiem o que deveria ser algo mais sério: que é a formação profissional. Este é um ponto que me inquieta.

Às vezes, os pesquisadores nos cursos de pós graduação (aqui refiro-me mais aos Mestrados e Doutorados) permanecem num mundo à parte e o que digo é que toda essa competência de fundo conceitual, metodológico, teórico precisa aparecer na sociedade e nos produtos oferecidos a instituições públicas e privadas e que não fiquem restritas às salas e discussões em aula. É altamente salutar fazermos isso! Em hipótese alguma sou contra a produção acadêmica e escrever e compartilhar deve ser nossa preocupação.
Não me coloco contra a realização de cursos e capacitações oferecidos em ambiente de web. Desde que os respectivos profissionais sejam responsáveis e tenham estofo intelectual, teórico e metodológico para isso. Esta responsabilidade sim, fará com que haja produção de Conhecimento. E é com ela que me preocupo e esforço todos os dias. 

É contra esse mercantilismo que me coloco!

A dica que fica é: quer aprimorar seus conhecimentos? Estude, investigue para poder saber escolher entre joio e trigo. 

Ou então:

Quino, Picasso revisitado

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Tempo: Valioso e Essencial

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Ouça eu ler para você (escolha a opção abrir com: 
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Não contem a ninguém: mas hoje faço Aniversário.
É a passagem do Velho Senhor dos Tempos em mais uma ronda. Alcança-me os anos e mostra-me a conta dos meus dias.
Penso sobre tudo e concluo que a vida é mesmo sábia. Nos dá os anos para que não vivamos tudo de uma só vez. Viver, portanto, é ter a paciência para moldar um espírito inteiro!
Olhando para frente, e para trás, parece-me que tenho muito menos a viver do que já vivi. Eles passam e ganhamos certas coisas, na exata medida que outras se vão.
É a Lei das compensações:

Aos 18 meses de idade

Se a pele perde viço, os pensamentos ganham razão. Os bons argumentos se fazem desta.
Se o tônus do corpo se perde a mente e as ideias ganham contornos e robustez. Sabem que precisam ser edificadas fortes para que firmes se sustentem.
Se o corpo pode falar, o silêncio ao lado da escuta pode ser bom conselheiro. Descobre-se o verdadeiro sentido de se ter dois ouvidos e apenas uma boca: é preciso sempre ouvir mais do que falar.

Se as paixões não são avassaladoras, há o terno calor do amor companheiro que aquece e segue por onde quer que possamos ir.

Se os olhos precisam de óculos, a perspicácia ganha agudeza. Enxerga-se adiante num futuro que ainda é esboço, nas entrelinhas de gestos, de não ditos.
Descobrimos que em toda nossa trilha, com tantas idas e vindas, cada um de nossos dias foi vivido em nossa exclusiva companhia. O Tempo nos faz solidários e generosos com o que somos. Estaremos juntos até a última de nossas respirações. Assim nada de animosidades, rancores, maus sentimentos. O maior de todos os amores deve ser gentil, suave e sem culpas ou arrependimentos: é de nós para nós mesmos.

Substituem-se sonhos por realizações. Na ronda do Tempo percebemos o que fomos e o que nos tornamos e como a alquimia dos sonhos transformou nossas vidas, materializou projetos, redimensionou ideais. Criou pontes entre passado, presente e futuro.
Tudo em perfeita sincronia para que os anos nos cheguem e tenhamos o que barganhar.
Muito interessante e sábio.

Do outro, e até porque os anos passam e o saldo tende a diminuir rapidamente, não temos tempo a perder. O Tempo nos faz saber que correr para enriquecer é o remédio para todas as doenças. E que o lucro obtido será gasto para comprar a cura das doenças acumuladas pelo estresse, noites mal dormidas, trânsito pesado, reuniões intermináveis.
Não se lucra quando se subtrai.

O Tempo é valioso e essencial, tece-nos a trama de quem somos, nos dá memórias e vinca nossa identidade pelas eras e pelos espaços por onde trafegamos, portanto:

Não há Tempo para se perder com a fogueira de vaidades e com coisas sem importância.
… . É sim, Tempo para cultivar generosidades;
Não há Tempo para se ocupar de existências alheias.
… . É sim, Tempo de colher o que se plantou;
Não há Tempo para discussões sem proveito ou lutas insanas.
… . É sim, Tempo das almas maduras que buscam apenas o essencial;
Não há Tempo para perder com invejas, fúrias, preconceitos, mesquinharias (físicas ou espirituais)
… . É sim, Tempo de sedimentar o que de fato foi construído;
Não há Tempo para desejos de vingança ou ganâncias.
… . É sim, Tempo de perpetuar para não esquecer nossa brevidade no lapso tempo/espaço;
Não há Tempo para disputas, melindres ou guerras de egos e poder.
… . É sim, Tempo para alargar o espírito.

Enfim, não há Tempo para mediocridades e posses. Não servirão de nada para o lugar que iremos!

Talvez o caminho ao final seja de novo inverso: nascemos sem nada (física, mental, material, espiritualmente) e deveríamos, se aprendemos algo do Tempo, levar de volta um espírito alargado.

Se ao nascer começamos a morrer, olhando-se de lá para cá, talvez ao morrer começamos a nascer daqui para lá.

Sigo pensando que quero que meus anos passem, para que ao final possa dizer no meu Testamento:

Não deixo bens…
Não acumulei nem construí nada que possa ser roubado ou destruído.
Não possuo nada de valor material para ser perdido.
Não tenho nada que possa ser penhorado, trocado, vendido

Tenho apenas: 
Voltas que dei pelo mundo
Encontros delas resultados;
Amores vividos, 
Caminhos compartilhados,
Escolhas e mudanças de rumos e rotas
Paisagens que vi pelas janelas, em todos meus deslocamentos.

Culturas que conheci
Templos que entrei
Arquiteturas que vi
Pontes que atravessei
Muralhas que adentrei
Ruas por onde andei;

Mares que naveguei
Odores e sabores que experimentei
Pores-do-sol dourados que assisti
Amanheceres de luz que vi
Gotas de chuva caídas em dias quentes de verão
Luas de prata e douradas suspensas com meus pensamentos distantes
Tons de outono
Sombras frondosas e folhas em matizes sépia
Horizontes cor de esmeralda
Céus estrelados de dois hemisférios;

Sons que escutei
Brisas que senti
Músicas que dancei
Brindes que fiz
Vinhos que amei
Livros que li;

Vistas de sonhos sendo construídos
Quadros e esculturas que apreciei
Pensamentos que arquitetei
Linhas que escrevi
Tramas que teci
Ligações que estabeleci
Sorrisos que distribui;

Desculpem-me todos…
Os erros que cometi.
Não tive tempo de acumular artigos

Estive todo tempo ocupada em Viver!…

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Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Há muitas formas de visitar a morte.
Às vezes, a visitamos pela experiência sofrida assistindo a debilidade que avança, os dias que chegam ou o convívio com uma sentença de morte provocada por uma doença sem cura, ou um acidente que ceifa vidas e planos.
A experiência sentida para todos estes casos é a da perda ou dor. Paira sobre nossas mentes e nos faz saber que, mesmo em sua ausência, sua presença pode ser constante enquanto não chegar.
Seu lugar em nossas vidas está também nos espaços que ocupa. Espaços simbólicos, emocionais ou físicos, não importam. Os tempos e espaços destinados para a morte em nossas vidas ocupam nossos corpos, mentes e até mesmo lugares específicos para seu culto/lembrança.

Dentre os lugares de morte o cemitério talvez seja o de maior representatividade no mundo. E aqui, independente de culturas ocidentais ou orientais é um espaço do Sagrado e de reverência ao que ele guarda. 

Os cemitérios são exatamente o local, e a cidade dos mortos, no mundo dos vivos. 
Representam esta cidade que está calada e desenhada, porém viva como um recado, uma lembrança, um alerta. É arquitetura esquadrinhada, que possui seus lugares e hierarquias e até mesmo imposição de posições sociais, prestígio, status e valores que podem ser observados através de todo um conjunto de símbolos que chamamos de arquitetura tumular. Exemplos não faltam de elementos desta arquitetura de vivos para o mundos dos mortos, e neste ponto apresento alguns destes elementos que utilizamos como estudo na área que denominamos em História de Cultura Material.
Os jazigos, seus túmulos e toda a referência mobiliária e de objetos prestam-se a um excelente meio de análise e abordagem de um tempo: oferecem ao pesquisador referências interessantíssimas e muitas vezes ausentes em outros tipos de fontes como: nomes, datas de nascimento e morte, preferências sociais, culturais e relações familiares trazidas por meio de dedicatórias e despedidas onde os nomes e laços de parentescos ficam expostos.
Convertem-se em acervos “vivos” da Memória de um tempo e das vidas de seus ocupantes, os seus laços e suas relações.

Há todo um conjunto de signos iconológicos que favorecem a interpretação sobre o período de sua produção e em qual contexto social e cultural foi utilizado como representação. Em tempos mais recentes as fotografias surgem como outro elemento carregando mais informações sobre o morto. Sua fisionomia, e em alguns casos, sua sisudez ou sorriso nos desafiam o olhar. Fixados num determinado espaço/tempo nos dirigem o olhar,  nos inquirem… Recortados em um contexto são imagem cristalizada de um projeto que se interrompeu. A imagem, por excluir a morte, é carregada de vida e energia. Talvez por isso, tenhamos a empatia do olhar que se comunica e troca. É impossível não pensar sobre aquele rosto, a história que tinha e como chegou ali: alguns muito cedo, outros após uma existência plena com cônjuges, filhos, netos e até bisnetos.
Englobam-se no que chamamos arquitetura tumular a arte representada pelas esculturas que ornamentam os túmulos. Representam visões de mundo de um tempo, de uma sociedade, de grupos familiares e pessoas, fornecem elementos caros à construção de uma memória de si e do seu entorno social. Um conjunto rico, e muitas vezes valiosíssimo de expressão artística, fazendo muitos cemitérios ter programas de visitas guiadas por seus túmulos para amantes desta arte ou para acadêmicos de diferentes áreas.

Muito interessante entender que os cemitérios, tal como as cidades tem uma história de implantação e definição tanto estética quanto dos seu lugares e limites no tecido urbano. Não surgem espontaneamente, e são sim fruto de um projeto social para estar inserido no mundo dos vivos.

Por isso, é preciso entender as circunstância em que os cemitérios foram se secularizando. O espaço destinado aos mortos era sempre um local de proximidade: eram colocados, por exemplo, nos terrenos em volta das casas, ou nos espaços considerados sagrados das igrejas e seu entorno. Isso propiciava a proximidade e alguma privacidade a estes corpos abandonados pela vida, ceifados por diferentes motivos. A secularização dos cemitérios levou estes corpos a compor um outro espaço só que desta feita coletivo. Os mortos seguem assim um destino comum reservado a todos e longe das casas e seus quintais que os abrigaram por toda vida. Neste local, o espaço da morte é definido e demarcado para estar nas bordas das cidades e a partir de uma concepção higienista de sociedade, onde a doença e a morte precisam ser isoladas e retiradas do convívio familiar. Experimentar a doença e morte deixa de ser um ato corriqueiro e familiar (algo que até então era usual e costumeiro) e começa a possuir espaços definidos para isolar, cuidar e quando não for mais possível, enterrar. A doença, a dor e a morte eram assim levadas para outros territórios. São territórios da morte.

Os túmulos de uma mulher católica e seu marido protestante, que não puderam ser enterrados juntos devido aos regulamentos do cemitério. Eles morreram na década de 1880.
Nota: as mãos segurando sobre a parede divisória. Localizada em Roermond, Holanda.
Por: Lindsey Fitzharris

Uma cidade aprisionada
A sociedade deste período (e falamos em algo a partir do século XVII e XVIII, com maior incidência a partir do século XIX) passa a ter diferentes instituições que procuravam isolar, controlar e disciplinar. É deste período que vemos o surgimentos de instituições como quartéis, conventos, escolas, manicômios, hospitais e porque não cemitérios?! A lógica para todos os casos é sempre a mesma: murar, cercar e facilitar a vigilância fornecendo espaços esquadrinhados, milimetricamente individualizados, entradas e saídas quase que exclusivas e horários rígidos para trânsito e permanência. A individualidade garantida é a do próprio corpo que ocupa celas, cadeiras, camas ou para nosso caso, o jazigo, a sepultura.

Para os cemitérios, a ordem de fechamento, que se mantém até os dias de hoje, revela a nítida separação entre o simbólico: Luz e Sombras, que remete ao perigo das almas que habitam o “mundo subterrâneo e escondido das profundezas”. Não devendo por isso, comunicar-se com o mundo dos vivos no período onde reinam as Trevas.

Esta cidade dos mortos a que nos referimos acima recebe dos vivos, em seus primeiros séculos, consideráveis investimentos: a morte e os sentimentos em relação a ela precisavam ser mostrados por meio de mausoléus ricos em detalhes, com muitos acessórios e peças vindas da Europa. Artistas, escultores e artífices da morte eram contratados para entalhar detalhes de vida e personalidade do morto em pedras, mármores, granitos. materiais que pela dureza e durabilidade remetiam à Eternidade, Permanência, Presença do Ausente.

À medida que a sociedade sofre a perda do poder aquisitivo, os túmulos deixam de ser locais de ostentação e a arquitetura tumular parece empobrecer. É o período de popularização de cruzes, sem a riqueza escatológica de períodos anteriores. A cor predominante continuava sendo o branco. Mas o investimento na morte se reduz enormemente.

Em períodos de maior opulência, como entre os anos 1900 e 1930 no Brasil, a morte passa a ser vista como um grande espetáculo e momento onde se pode mostrar a força e o poder.

Com isso toda uma produção artística atende esta população endinheirada e opulenta das cidades que se metropolizam. As cruzes passam a ser paulatinamente substituídas por crucifixos.
Tal como a cidade extra-muros, não há homogeneidade entre seus ocupantes. Riqueza e poder possuem elementos explícitos de ostentação. Daí a riqueza que estes elementos oferecem como território de análise para construções mentais, sociais e culturais. É um território de representações, sem dúvida! Mas tais construções iam além: os cemitérios podiam segregar não apenas por seu mobiliário e posição social. Desde o passado remoto, os mortos poderiam ser incluídos ou excluídos a partir de seus dotes ou preferências espirituais. Quanto mais considerados próximos da Divindade mais próximos poderiam ser enterrados dos templos e locais de adoração. Em tempos mais recentes os cemitérios criaram a segregação religiosa. E assim protestantes não podiam ser enterrados em cemitérios cristãos, suicidas não podiam ser enterrados em solo cristão, nem mulçumanos em cemitérios não-mulçumanos e assim sucessivamente. A morte e seus corpos carregavam o estigma espiritual de suas opções e escolhas feitas em vida. 

Ter em mente todos os elementos citados acima não significa esquecer-se de outras dimensões.
Passear por suas Alamedas propicia um silêncio e um contato com o tempo de histórias que já se foram, personagens petrificados em sorrisos de fotografias, em frases nas placas com datas, locais de nascimento, dedicatórias, epitáfios ou mesmo frases avulsas que sintetizam  pensamentos e ideias dos que foram ou dos que ficam. A comunicação entre vivos com seus mortos e dos mortos por meio de seus epitáfios são gravados em pedras e materiais de longa resistência como mármores, granitos. São assim um convite à permanência e resistência ao tempo e intempéries. Afinal ali estarão, imóveis… colocadas para resistir às muitas estações e gerações. Só farão sentido se assim forem e se assim conseguirem se manter frente à passagem do tempo por elas.

Estes escritos são, portanto, o registro do Tempo. São um mergulho de alma que nos remete a vidas que se passaram e relações que se entrelaçaram. Vínculos expostos publicamente num gesto final que pretende ser de resistência ao esquecimento.  Este território da morte perdido na cidade dos vivos é um território de transição: local de saudades de lembranças, abandonos, vidas que se deixam, vidas que permanecem.  Esta transitoriedade presente e calada nos faz pensar sobre permanência e imanência, e mostram a relação que seres humanos possuem entre si e com a sua representação de seus medos, suas inseguranças, esperanças e até fé.
Inevitável não pensar em alguns casos como o abandono chega e avança: delapidação, vandalismo, esquecimento, estão presentes em muitos destes locais.

Em outros lugares, ao contrário, somos levados a observar o cuidado com a lembrança personificada pela presença viva de flores e plantas. Afinal, estas servem para nos fazer lembrar que a vida possui seus ritmos, obedecem estações e estão em meio a esse tempo passado.

Os cemitérios, tanto como as cidades, envelhecem e até morrem. Deixam de ser territórios de lembrança, culto e devoção. Vencidos pelo tempo, muitos apenas deixam de existir. Outros, tal como muitas cidades ganham robustez com a passagem do tempo por meio dos personagens que ali tem seu destino final. Oferecem a todos o testemunho de um outro tempo e seguem sendo uma cidade de mortos no mundo dos vivos.
Paradoxal portanto, que este mergulho nesta cidade dos mortos, revela o quanto de vida pulsante existe em suas ruelas, quadras, muros e extra-muros. 

Os Mortos e o Luto em Tempos de Pandemia

Não poderia deixar de abordar o tratamento dado a morte e seus corpos em tempos de pandemia. 

A Pandemia de COVID19 trouxe ao mundo uma outra relação com todos os ritos relacionados aos mortos e seus parentes: desde os processos de isolamento no período crítico de internação, até sepultamentos sem velórios acompanhado por apenas uma ou duas pessoas. A experiência do luto deixa de ser restrito a um grupo familiar e ser compartilhado por cidades, países, continentes. A vivência da doença e morte é levada ao paciente como experiência solitária. A morte e sua materialização ocorrem em valas comuns ou sepulturas que se espalham pelos cemitérios aguardando caminhões frigoríficos e filas intermináveis de carros funerários. A morte ganha um status de linha de produção com excedentes de corpos insepultos.  Os corpos perdem o direito dos seus ritos: procedimentos de tanatopraxia (lavagem e preparo do corpo para o rito fúnebre) por exemplo, deixam de ser feitos. Os corpos possuem terão que passar por procedimentos de limpeza com produtos adequados, são embalados em plásticos com zíper e entregues para sepultamento em um caixão lacrado. Sem velórios, os corpos seguem para o sepultamento ou cremação acompanhados por no máximo quatro pessoas.
As despedidas comuns aos entes queridos deixam de ser possíveis, e em muito casos a pessoa que entra no hospital para isolamento nunca mais retornará. 

O Brasil, apesar de todo o negacionismo em relação às mortes, teve cemitérios lotados, covas rasas, retroescavadeiras, caminhões frigoríficos e até valas comuns! Tudo revelando a forma como a doença inesperada escancarou despreparos, desrespeitos e alguma negligência por parte de autoridades. Afinal, a cidade dos mortos pobres nas cidades dos vivos, significa invisibilidade constante. Os cemitérios apenas existem nas áreas periféricas para dar destino aos corpos que abandonam a vida por doenças e mortes violentas. Não cumprem uma função social de conforto, mas mais uma vez de exclusão e silêncio.  

Exemplar destas cenas são rapidamente localizadas, mas creio que dois cemitérios representaram muito bem o que foi a invasão de um inimigo oculto na vida das cidades. O cemitério de Manaus nos ofereceu cenas que serão icônicas do que significa improvisação e um estado acéfalo: valas comuns e retroescavadeiras.

Outro exemplo as imagens aérea do maior cemitério de São Paulo (Vila Formosa) com covas abertas antecipadamente aguardando seus mortos, que chegavam em filas de carros fúnebres. 
Sem ritos, túmulos ou cerimônias e despedidas, as cruzes brancas com números identificam os mortos em valas estreitas e rasas. Uma explosão demográfica na cidade dos mortos: crescimento desordenado, sem planejamento, vias de acesso ou quadras…

O espaço, que em uma configuração planejada seria de uma determinada dimensão tem as sepulturas delimitadas por madeiras para separar o espaço mínimo entre os corpos e sua urna. Tal a quantidade de corpos perfilados.  

O tempo ainda nos mostrará com maior amplitude as cicatrizes nos tecidos destes solos, sagrados para alguns, e suas consequências na forma de entender este processo de mortes coletivas e a lida com o luto. De concreto temos é um novo espaço criado pela pandemia nas áreas periféricas de todas as cidades: um espaço que não mais apresenta uma arquitetura tumular, mas simplesmente caminhos perfilados de caixões, justapostos lado-a-lado. 

A desigualdade se manterá entre ricos e pobres, já que para o caso dos endinheirados seus corpos serão depositados em seus mausoléus e túmulos de família. A escrita da pandemia nos cemitérios da cidade deixará seu desenho de exclusão e indiferença muito bem marcados. 
Não concluo, pois há uma pandemia em ação. Os corpos que deixa atrás de si contam trechos de muitas histórias. 

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Artigos relacionados:
Rezende, Eliana Almeida de Souza.  “Os historiadores e suas fontes em tempos de Web 2.0“. Publicado nos Cadernos do CEOM, ‘Documentos: da produção à historicidade”, Capa > v. 25, n. 36, Editora Argos, Chapecó, 20 (acessado em 01/11/2020)
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Ventres urbanos: cidades e sanitarismo“. Revista Ler História. Dossiê Guerras Civis, Lisboa. n. 51, 2006. pp 135-165 (acessado em 01/11/2020).
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade” (acessado em 01/11/2020)

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Quino & Mafalda: Eternos

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Estranho como uma relação entre criador e criatura pode ser tão forte e simbólica.

Ainda ontem relia este artigo que escrevi quando Mafalda se tornou cinquentenária (Setembro, 2014). Para minha surpresa, um dia após o aniversário de surgimento, o Sr. Joaquin Salvador Lavado, o Quino, nos deixa. Ele falace exatamente um dia após o aniversário de criação de sua eterna Mafalda.

O que nos fica?

Como uma boa ideia com humor e crítica ácida à mistura podem render bons anos de vida? A resposta em uma única palavra é: Mafalda. Contestatória, politizada, insatisfeita com o mundo. Sempre cheia de questões e inquirições. Uma ardorosa aversão às sopas. Niña esperta, espontânea, sabida, verborrágica: sempre com muito a dizer.

Mas a garota apesar de manter-se uma menina nas tiras é uma cinquentinha.

Considero que a coisa interessante no caso da personagem é sua sobrevivência no tempo a partir de uma boa ideia e doses de “realidade”. A atualidade está exatamente em explorar as vivências e angústias de todos,  independente de onde ou como vivam. É um questionamento para um mal-estar que nós latinos entendemos tão bem. Penso também sobre sua estabilidade e permanência em um mundo feito de tantas obsolescências e descartes. O que a torna ainda tão factível?

A primeira coisa que me vem à mente é exatamente essa inteligência ingênua, antenada e bem humorada que lhe confere tanto sucesso e permanência até hoje.

A politização com crítica mordaz dão um tom todo especial e, independente do país e da idade, nos identificamos com seus pensamentos.

Mafalda dentre tantas coisas não é apenas e tão somente um personagem de tirinhas. Nasce como personagem de campanha publicitária e emancipa-se pelas tirinhas. Ela representa toda uma sociedade (no caso a argentina) do final dos anos ’60 e começo dos anos ’70. Uma sociedade que vive em ditadura de suas fronteiras, e que vê os países vizinhos vivendo a mesma situação. Assiste a uma guerra em andamento no Vietnã e os EUA em plena expansão imperialista.
As tirinhas eram publicadas diariamente e sempre se relacionavam aos eventos cotidianos ocorridos na própria Argentina, na América Latina ou no mundo. Era portanto, produto de um contexto social, politico, econômico e trazia muito da própria personalidade de Quino, que era em sua essência um contestador e crítico da sociedade em que estava inserido. Mafalda externava todo este DNA de seu criador. Era ela que dava voz ao mundo efervescente em que estavam.

A sociedade é confusa para seu olhar: não sabe bem porque há uma guerra no Vietnã, inocentemente se preocupa com a presença dos chineses, não sabe o porque de tantos pobres em volta, desconfia da mídia (jornais, revistas, TV) e do “Estado” (militar) e só consegue ter clareza de que não se conforma!

O mundo, sob sua ótica, está doente e ela anda às voltas com a busca para solucionar o que está errado. Cercada de adultos, não consegue compreender porquê os pais e todos os outros permitem e estragam o mundo.  Nada fazem.

Os colegas não lhe trazem maiores respostas e aparecem como síntese de visões pequeno-burguesas: Manolito, que apesar de coroinha, tem como principal valor o dinheiro. Felipe é o sonhador romântico de plantão e Susanita convertida ao espírito de um consumismo burguês.

A convivência com estes já não era fácil, mas chegam os dois mais novos integrantes de sua turma: Libertad, responsiva mas muito pequeninha e o Guille (irmão caçula de Mafalda) capaz de dormir ouvindo rock e se deslumbrar por Brigitte Bardot.
Era o fim para Mafalda!

Diante de tantas contradições, talvez seja simples compreender o porque de tantas inquietações e verborragias trazidas por ela.

Imagino o quanto Mafalda se indisporia com o mundo em conexão e redes ditas sociais, os conflitos que ainda alimentam a fome imperialista americana e como direitos humanos continuam sendo violados. Não é mais só o Vietnã! Proliferaram países, guerras, lutas e motivações. Temos a Síria, Palestina, Croácia, Coréia, Irã, Iraque e por aí segue. Os pobres e desvalidos pela fome, pela guerra, pela discriminação de todas as ordens e faces (religiosas, étnicas, culturais, de gênero, sociais), doenças convertidas em verdadeiras epidemias aumentam dia a dia.

O planeta geme de muitas formas: há tempestades, tufões, furacões, tsunamis, secas prolongadas, queimadas. A política cada vez mais corrupta e sem limites éticos, morais, valores. Uma incompreensão sem fim.

Sim, é há a mídia. Agora não apenas impressa ou televisa. Chega de todas as formas. Uma explosão de sentidos e significados, e a desinformação cada vez mais usada como tática para atingir seus fins.

Temos que pensar que Mafalda surge na mesma época em que a televisão surgia e trazia ao debate sobre os meios de comunicação de massa e o quanto imprimiriam novos comportamentos à sociedade em geral. Sua resistência aos meios de comunicação como meios de manipulação mostram este desconforto que era vocalizado dia-a-dia nas questões de Mafalda.

Quantos temas!
Mafalda teria muito de que se ocupar.

Mas acho que o que menos interessa é a idade em si. A comemoração mostra o quanto essa personagem tem eco em diferentes sociedades. Esse eco reforça a concepção de que uma boa ideia desenvolvida com inteligência sempre é bem vinda! Em geral, interessa pouco a procedência do personagem. É este vigor o que comemoramos. É esta forma simples, direta, e de traços igualmente simples que comemoramos. Afinal transmitir ideias e inquietações pode até ser divertido. Quino e Mafalda nos mostraram isso por mais de 50 anos!

Ela faz aniversário, mas quem ganhou o presente fomos nós! Afinal, Mafalda chegou numa bagagem trazida pelos adolescentes dos anos 60/70 e apresentada aos adolescentes atuais pelos sessentões de hoje. O ideário da personagem não envelheceu e se mantém tão moderno como quando foi apresentado pela primeira vez em 1964. As aspirações, angústias e questionamentos continuam os mesmos.

E aí vejo uma outra metáfora para a nossa Mafalda. O tempo não precisa ser tirânico e nem amedrontador. Basta apenas estar em sintonia com seu tempo. O vigor não precisa de botox e outras plásticas, que na verdade só cuidam do que é externo. Sua juventude vem de uma mente sã, perspicaz, concatenada com a atualidade do seu tempo e suas complexidades. Perigosamente generosa!

Da minha parte, partilho com Mafalda a inquietude, questionamentos, politização com a existência e uma necessidade imensa de troca. Talvez por isso, goste tanto dos Grupos, de Debates e da escrita. Me dão combustível para alimentar e saciar minha sede por perguntas e busca de respostas. 
Assim sigamos, pensando, trocando e buscando argumentos e quiçá consigamos a longevidade e perenidade de Quino e Mafalda: criador e criatura!

Este aniversário fica mais triste, pois o Sr. Joaquín, o Quino nos deixa…
Mas está eternizado em nossas mentes e corações….

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Dica de Leitura:

Mafalda e a televisão: a comunicação de massa nos quadrinhos de Quino 
Mafalda e Quino 

* Post atualizado a partir de publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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