Por: Eliana Rezende Bethancourt

Em diferentes artigos apontei a importância da Gestão Documental no âmbito da Gestão Pública, tanto na Administração Direta como Indireta.
Aplicada à Administração Pública podemos enfatizar que é garantia de racionalidade e transparência administrativa, bem como ferramenta eficaz na tomada de decisões estratégicas.

E ainda mais.

A Gestão Documental nas instituições públicas é meio de exercício de cidadania. Indo além: podem e devem integrar a categoria dos Direitos Humanos.
Ela é sem dúvida, ferramenta fundamental na trabalho de acesso à informações que possuem um valor incalculável, e por isso, consideradas Patrimônio Cultural e Documental.

Exatamente porque as ferramentas, normas e procedimentos aplicáveis à Gestão Documental garantem que os documentos sejam armazenados, organizados e disponibilizados, cumprindo com o que é denominado uma tarefa de preservação e conservação de documentos de valor permanente, e portanto, históricos.

Neste sentido, podemos dizer que por terem como objetivo custodiar e preservar tais documentos, os arquivos públicos também possuem uma função social: o atendimento ao usuário/cidadão em suas demandas sobre fatos relevantes que integram nossa História.

Arquivos como matéria-prima

Um exemplo interessante e apropriado para este caso é a documentação reunida, organizada e disponibilizada pelo Arquivo Nacional em relação à vários temas.
Dentre eles, o período denominado Ditadura Militar, compreendido entre 1964-1985.

Para este caso específico, foram reunidos documentos de diferentes procedências: desde documentos produzidos pelos próprios órgãos repressivos, decretos, leis e outros registros baixados pelo próprio regime militar, e como é óbvio: os atos institucionais que normatizaram e validaram ações repressivas contra a sociedade civil organizada.

Mas não apenas estes registros.
Também foram obtidos documentos como fotografias da Agência Nacional e o Jornal Correio da Manhã, e mais recentemente documentação produzida pela Comissão Nacional da Verdade.

Além disso, por meio de processos instaurados, a organização documental pode localizar documentos que foram considerados subversivos e proscritos pelo regime. Um exemplo interessante é uma letra composta por Chico Buarque de Holanda e cantada por Mario Reis, chamada “Bôlsa de Amores”.

Há também filmes, cartas e outros registros que compõem este rico acervo, como se observa nos documentos abaixo:


Colagem de imagens e prints de vídeos originais que hoje são fartamente utilizados nas redes sociais

Divulgação é fundamental

Mas como ocorre com TODOS os acervos, nada adiantaria apenas armazená-los. É preciso um grande trabalho de divulgação de acervo para a sociedade como um todo. As formas de divulgação ocorrem em especial pelas vias da Arte, Cultura e Educação, onde tais materiais podem ser utilizados e integrados à diferentes projetos educacionais e culturais.

Daí a importância de entendermos que tratar de temas como a Ditadura Militar no Brasil, não é um tema de menor importância. Tomar tais temas, e utilizar toda a gama de registros documentais disponíveis, é uma forma não apenas de não esquecermos, mas de educarmos e entendermos valores fundamentais, como Cidadania, Democracia, Liberdade, História.

E o mesmo ocorre com inúmeros outros temas sensíveis que repercutem nas formas como nossa sociedade se constitui e se compreende, dentre tantos podemos citar a escravidão, que impacta diretamente sobre a forma como compreendemos historicamente relações de trabalho e de racismo no Brasil, por exemplo.


Quando afirmamos que os documentos são Patrimônio Cultural e Documental estamos dizendo que são eles que nos trazem pistas, vestígios que nos ajudam a entender quem somos e de onde viemos. O Patrimônio Cultural é o modo pelo qual o Homem entende a si mesmo e o seu entorno.

Gestão Documental como categoria dos Direitos Humanos


Pensado desta forma, a Gestão Documental dentro das instituições públicas é elemento fundamental de exercício de cidadania, e indo além: pode e deve ser compreendida como estando na categoria dos Direitos Humanos. Isso porque, a partir do acesso à Informação os cidadãos podem tomar suas decisões com uma margem maior de acerto, e isso é sem dúvida, exercer seu direito como Cidadão.

Por isso, gosto de utilizar a expressão Usuário/Cidadão ou Cliente/Cidadão. Já que antes de tudo, cada pessoa que se dirige a um órgão buscando informações é um Cidadão, e como tal deve ser tratado.

Sob esta ótica TODOS os que trabalham em arquivos públicos possuem esta responsabilidade explicitada em Lei, que é a de dar acesso à Informação. O que cada cidadão, instituição ou órgão fará com tal informação não nos diz respeito. O papel dos órgãos que zelam pela integridade dos arquivos e acervos é apenas fornecer a informação solicitada.

Fica evidente, portanto, o circulo virtuoso que um arquivo pode ter no âmbito da sociedade civil.
Enquanto agentes públicos, os arquivos possuem a responsabilidade de custodiar, organizar e disponibilizar acesso às informações contidas nos documentos existentes em seus acervos.

Gosto de ressaltar que os arquivistas que zelam pelo cumprimento de atividades de identificação, catalogação, digitalização, higienização e armazenamento de documentos devem cumprir da forma mais precisa seu trabalho, cumprindo de perto normas e procedimentos técnicos. Ele NUNCA deverá agir como um pesquisador, apesar do fascínio que os acervos causam em muitos.
Fazer isso, removerá dos documentos as possibilidades de usos diversos.
Ele funcionará de forma restritiva às possibilidades que tais documentos oferecem.

Neste sentido, normas e procedimentos técnicos são a garantia de que tais documentos cumprirão suas funções determinadas por sua origem.

E outro ponto necessita ser salientado.

Se o arquivo deve zelar pelos documentos, sua primeiríssima atitude será a de obedecer a origem que este documento possui. Pois é somente por meio dela que compreenderemos sua função, seja ela social, jurídica, cultural, entre outras.
Fragmentar acervos e escolher documentos que deveram ser tratados como relíquias históricas NÃO é trabalho técnico e muito menos histórico!

De novo, não podemos retirar dos documentos sua organicidade presente na forma como foram acumulados no interior de uma instituição.

Apesar disso, os arquivos podem e devem ter usos e aplicações diversas após terem cumprido suas funções iniciais, determinadas pelas funções que os levaram a ser produzidos.

Entenda:

Arquivos e sua utilização como produto cultural

Uma vez organizados e acessíveis, estes documentos, retornam à sociedade não como documentos, mas como informações que poderão ser utilizadas de diferentes maneiras e na produção de conhecimentos diversos. Podem originar pesquisas acadêmicas, projetos educacionais diversos (oficinas, workshops, elaboração de aulas, escrita de livros, artigos e afins), projetos artísticos/culturais (como exposições, peças, documentários, filmes, mostras, etc).

Ao tomar esta forma de produto cultural/educacional ele irá interagir com a sociedade e produzirá novas formas de apreciação, compreensão e até conhecimento.

Daí sua importância no âmbito da construção de uma sociedade mais educada, crítica, perspicaz que sabe como se valer de informações que podem ser acessadas de forma livre e criativa.

Vejamos um exemplo muito interessante de uso de documentos de acervo para diferentes produções.
A 1ª imagem na verdade, é um print de uma cena de um documentário intitulado “Como a Ditadura Militar ensinou técnicas de tortura à Guarda Rural Indígena (Grin)“, seguido por uma imagem que há anos é utilizada na internet para compor memes do tipo ilustrado abaixo.



O caso do vídeo também é muito interessante, já que ficou desaparecido por 42 anos, e é revelador ao mostrar como a Ditadura treinou a Grin (Guarda Rural Indígena) com técnicas de tortura, como o pau de arara, e enraizou a violência policial em terras indígenas.

Segundo a reportagem da jornalista Laura Capriglione:

“(…) Aquele 5 de fevereiro de 1970 foi um dia de festa no quartel do Batalhão-Escola Voluntários da Pátria, da Polícia Militar de Minas Gerais, em Belo Horizonte. “Pelo menos mil pessoas, maioria de civis, meninos, jovens e velhos do bairro do Prado, em desusado interesse”, segundo reportagem da revista “O Cruzeiro”, assistiram à formatura da primeira turma da Guarda Rural Indígena (Grin). (…) Segundo a portaria que a criou, de 1969, a tropa teria a missão de “executar o policiamento ostensivo das áreas reservadas aos silvícolas(…)”

(…) O que nenhum órgão de imprensa mostrou –eram tempos de censura– foi o “gran finale”. Os soldados da Guarda Indígena marcharam diante das autoridades –e de uma multidão que incluía crianças– carregando um homem pendurado em um pau de arara.(..)”
– Reportagem de Laura Capriglione, originalmente publicada no jornal “Folha de S.Paulo”, em 11.nov.2012

O fato importante é que poder assistir um filme mostrando uma forma de tortura muito presente em porões, mas nunca vista ao vivo se deu pela obstinação de um pesquisador: Marcelo Zelic, à época vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.

Conta a repórter que realizando sua pesquisa no Museu do Índio Zelic se deparou com um DVD chamado “Arara” que era produto de uma digitalização realizada de 20 rolos de filme de 16mm, sem áudio. Em um primeiro momento o pesquisador achou que se tratava do grupo indígena chamado araras vermelhas, que habitavam a região de Altamira desde os anos 1850. Mas, ao se debruçar mais sobre o material descobriu que em verdade:

“(…) Tratava-se de pau de arara, a autêntica contribuição brasileira ao arsenal mundial de técnicas de tortura, usado desde os tempos da colônia para punir “negros fujões”, como se dizia. Por lembrar as longas varas usadas para levar aves aos mercados, atadas pelos pés, o suplício ganhou esse nome.(…)”

Trecho da reportagem de Laura Capriglione, citada acima

O filme que hoje podemos ter acesso via plataforma digital é parte do acervo sobre 60 povos indígenas, coletado durante quatro décadas pelo documentarista Jesco von Puttkamer (1919-94) e doado em 1977 ao IGPA (Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia), da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Eis o vídeo completo:


O exemplo acima deixa muito claro o longo percurso que ás vezes um acervo tem até encontrar a sociedade. Pode envolver pesquisa, preservação, e muitas vezes alguma sorte.
Digo sempre que os documentos de valor histórico são sobreviventes: de sinistros, destruição, descaso, crime e ocultação. Mas se houver pelo menos UM que persiga sua missão a sociedade terá chances de os conhecer.

O caminho desse material documental foi muito longo. 42 anos de estar envolto em sombras e hoje só pode estar disponível graças à muitas técnicas informacionais: desde sua migração de suporte até sua disponibilização e divulgação em meios digitais, e por último a generosidade de pesquisadores em compartilhar da forma mais aberta possível que é numa plataforma de streaming como o YouTube

Arquivo como Patrimônio

É preciso salientar também que tais acervos em geral, são de origem material.
Possuem características materiais que os identificam: possuem forma, relevo, tipo de material utilizado (pode ser papel, metal, argila, tecido, madeira, etc.), mas, ao ser apropriado por diferentes formas de manifestação cultural e educacional podem transformar-se em imaterial (um som, uma dança, um perfume, etc)

Por tudo isso, podemos afirmar que de forma inter e transdisciplinar a Gestão Documental e os Arquivos podem auxiliar na preservação de Patrimônios no interior da sociedade.

De novo, um outro desafio se coloca.
A partir do momento que os suportes ficam tão vastos e diversos, maior será a necessidade de especialização para o trato de tais documentos, garantindo sua preservação e conservação através do tempo.

É uma roda que não pára, e que definitivamente não se resume à ferramentas tecnológicas!

Gestão Documental é um universo rico e complexo que precisa ser pensado em todas as suas vertentes, por isso digo que não pertence à um nicho fechado, feito de uma única área profissional. É preciso entender que os arquivos abarcam diferentes profissionais oriundos de diferentes áreas.

Multidisciplinaridade é o seu nome

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