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Memórias de uma Biblioteca pessoal convertida em Acervo Institucional

Por: Eliana Rezende Bethancourt 

O espaço doméstico circunscreve escritas. Escritas de vida, de opções, caminhos feitos ou abandonados, viagens, experiências, saberes e leituras. Pensar o espaço doméstico significa entender que ele é preenchido com escolhas e experiências sensoriais, pessoais, afetivas, eletivas, intelectuais e sensíveis de seus moradores. A organização dos seus espaços e suas disposições surgem como um vasto vocabulário sobre modos de viver de seus moradores. Dessa forma, uma biblioteca pessoal no espaço doméstico possui aspectos fascinantes se analisada minuciosamente, buscando interpretar essa sua inclusão.

A biblioteca pessoal em nada se assemelha à uma Biblioteca Institucional por uma infinidade de motivos e que tentaremos explicitar neste artigo.

A maneira como optamos por organizar nossos livros, sua disposição no espaço da casa e a maneira como revelam nossas preferências e interesses são verdadeiramente fascinantes.

Podem ser despojadas, meticulosamente compartimentadas e organizadas. Simplesmente não importa.
Representam o caminho de uma vida.

Como as pessoas, os livros possuem uma identidade própria, e se bem ‘lidos’ em seu conjunto pelos que observam uma biblioteca pessoal, poderão descobrir o quanto estes volumes reunidos deram a seus leitores.

Os livros são testemunhas silenciosas das vidas que tiveram. São capazes de nos dar muitos sinais: a dedicação de horas a algumas leituras pode deixar marcas e rastros: as páginas podem ficar amarelecidas por terem sido muito folheadas.
É leitura multissensorial (feitas com os olhos, mas também feita com o tato e até o olfato). Esse contato deixa rastros e sinais nas páginas: dobradas, marcadas ou até mesmo inscritas. Isso ocorre quando essas páginas se transformam em breves esboços dos caminhos e reviravoltas do pensamento diante da leitura.

Divagamos entre o espaço entrelinhas ou entre parágrafos, delimitamos suas margens.
Existem momentos que são pausas e os dedos parecem percorrer as frases que expressam um sentimento, uma ideia, uma justificativa… um conceito.

Enfim, as margens como as que circundam um rio servem de pausa ou mesmo reflexão para uma mente que às vezes deambula, vagueia e saltita, entre a agitação ou a calmaria de um pensamento, um sentido, uma essência, uma lembrança ou uma conexão. . 

Em alguns casos, os livros tornam-se suportes de outras memórias que não estão explícitas em grafismos e letras: há os marcadores oficiais que são ao mesmo tempo uma publicidade, ou um desejo de consumir uma leitura no futuro.
Entretanto, é possível improvisar: podemos encontrar entre suas páginas notas ou recibos de uma compra ou um café onde o livro era a companhia perfeita, folhas e flores secas, cartões postais, fotografias, bilhetes ou ingressos. Todas inscrições materiais sobre momentos vividos e compartilhados entre uma pausa de leitura e outra. Ou quando estes passeiam com seu leitor por diferentes lugares: um café, um jardim, uma praia, um museu…ou até como ocorria em bons tempos, uma sala de cinema com filmes fora de circuitos comerciais e lixo pirotécnico denominado filmes de ação.

A biblioteca pessoal é assim um amálgama de memórias. Por entre seus volumes trafegam tempo, imagens, percursos físicos ou apenas de alma. Representam muitas vezes, o espaço do hiato entre o sentir e o pensar. São um território livre para uma mente andarilha e uma alma que busca por espaço.
Se nos detivermos às suas marcas descobrimos, tal como um detetive, o valor de cada via trilhada.

Percorrer seus volumes significa observar como caminhos foram alterados, interrompidos, aprofundados… ninguém permanece o mesmo no decorrer da sua construção intelectual e de sensibilidades. A biblioteca, sem dúvida alguma espelha as rotas por onde seu leitor vagou, se interessou ou simplesmente abandonou.

Às vezes, tais bibliotecas se apresentam com estantes bem organizadas, com volumes cuidadosamente dispostos numa lógica sui generis e pessoal. Mas há os casos em que a desordem nos apresenta uma lógica própria, singular e hierárquica de prioridades e valores.
Provavelmente os volumes mais desorganizados colocados sobre móveis, poltronas, mesas e sobre prateleiras organizadas significam exatamente a preferência e a prioridade de leituras. Não estão perdidos ou desprezados como poderíamos supor. Em verdade estão sempre presentes e à mão, acompanhando o leitor em diferentes fases e momentos. Não tê-los à vista ou na distância do movimento dos braços, pode gerar, em alguns, ansiedade, desconforto ou mesmo o receio de perda.

No seu todo, os volumes reunidos também nos fornecem tons, espessuras, texturas, alturas, formatos, design gráfico, tridimensionalidade. Explodem num espetáculo de tons, matizes e grafismos. Apanham nosso olhar e com ele dialogam.
Olhados no seu todo, permitem que sejam conhecidos o conjunto de temas, autores ou preferências várias do seu acumulador.
Representam e espelham o que é de real significado para seu possuidor e como este dialoga com seus escritores e obras preferidas. As ausências sentidas também indicam escolhas e preferências. Como ocorre com o silêncio, a ausência de certos autores por um perfil de leitor indicam também uma forma de comunicação e interação.

Em geral, as bibliotecas pessoais longe de possuírem uma organização técnica, possuem uma organização preferencialmente temática que se aglutina por uma hierarquia de gostares e prazeres de seu leitor/acumulador.

Cada autor ou tema representa para seu leitor um percurso pessoal de construção de pensamentos e experiências. 
Muitos dos seus volumes têm histórias que antecedem sua aquisição.

É normal que o colecionador se lembre onde e como teve contato com determinada obra e o que sentiu ao ler pela primeira vez o livro. Pode ter sido aquela leitura rápida de uma aba numa livraria ou num aeroporto qualquer enquanto esperava por um outro compromisso ou afazer. 

Há também os livros reservados para um dia ser lidos.
Estes, representam um ardente desejo de posse e uma inexplicável ausência da oportunidade, a tão esperada leitura que sempre fica adiada para um futuro incerto tanto quanto improvável.

E como não falar dos volumes repetidos?!
Quantas vezes o temor de não possuir nos faz comprar um determinado livro mais que uma vez?
E como não falar sobre aqueles que são atualizados em seus suportes: dos xerox em tempos de dificuldade financeira enquanto fazia a Faculdade às edições de capa dura de anos futuros.
Mais recentemente, alguns ganham uma edição kindle.
Não há preconceitos: apenas afetos! 

Esteticamente estes volumes carregados de afeto e palavras podem dividir espaço com outros objetos de cultura material, que servem como suportes a outras memórias, como: discos, CDs, fotografias, pequenas esculturas e miniaturas que remetem à lugares, viagens, lembranças, presentes. Dispostos de formas várias contam uma história de percursos diversos que entrecortam a vida pessoal e/ou profissional do leitor.
Dialogam sobre a personalidade de seu colecionador como se alfabeto fossem.
Dispostos em prateleiras, mesas, descansos, banquetas, apoios: inscrevem e marcam um espaço que não é apenas o físico. É também cultural e emocional.
Marcam posição por categorias internas de valores imateriais. Daí estarem tão próximos do que consideramos Memória.  
Trazem Identidade à biblioteca por meio dos elementos dispostos como aparente ornamentação por seu colecionador, mas ao olhar atento de um pesquisador trará um repertório imenso de hipóteses e investigação.

O livro assim, como objeto, é carregado de informações não apenas escritas, mas também de sentidos culturais ou de apropriação cultural.
Tê-los em determinada ordem ou local representa a forma como concebemos nosso imaginário. Materializa o que somos por partes. A biblioteca por seu todo revela quem somos, de onde viemos, para onde e por onde caminhamos.
É assim uma obra aberta enquanto existimos.
Estará completa apenas quando não estivermos mais aqui. Neste ponto de nossa jornada cruzará nossa história com os percursos de outros e provavelmente, se converterá em uma terceira entidade, com a matriz de seu possuidor como ponto inicial. 
Vale aqui pensarmos nas bibliotecas herdadas, que se somam à outras em conjuntos variados, às vezes pessoais, às vezes institucionais.

E como toda joia exposta, precisam de locais e materiais que sirvam para sua exposição.
Madeiras, metais, vidros, tijolos, bambus…todos materiais que garantem a estabilidade necessária para que ali adormeçam e sirvam de companhia. 

O espaço também se desenha não apenas a partir de seus formatos, mas em especial por seus tons que oferecem personalidade e conexão profunda com o emocional e até o espiritual. 

Eventualmente haverá espaços para leitura, composto por aquela poltrona procurada por tempos, um recamier ou sofá com a luz certa e direta para cada momento.

A luz externa será bem vinda e é comum que diferentes seres vivos partilhem o ambiente. Folhagens, orquídeas, arranjos florais vários trazem à vida constituída de outras sensibilidades e odores.
Compõem um quadro onde sensações e estéticas diversas se aliam e trazem conforto e paz. Converte-se em um refúgio para a alma descansar e o espirito se expandir.

Por todos este motivos, a composição pessoal e intransferível. Faz parte do cultivo pelo tempo de cada um dos objetos ali dispostos.
NUNCA estará concluída e sempre guardará um espaço remanescente para a mais nova aquisição. 

As bibliotecas pessoais que vencerem este desafio ganham um novo status: a imortalidade da trajetória de pensamento de seu detentor.
O caminho e o itinerário de sua coleção será um exemplar único de uma história única.
Será um volume que contempla uma existência inteira.
E só assim terá sua identidade conhecida por todos. 

Bibliotecas pessoais quando são convertidas em Acervos Institucionais

Se as bibliotecas pessoais possuem toda a riqueza de detalhes explicitada acima, é fundamental que as entendamos em toda a sua complexidade quando forem convertida em uma Coleção para integrar uma Acervo dentro de uma instituição.

É usual que algumas bibliotecas pessoais, por seu caráter singular e específico mereçam ser recebidas quer como doação, quer como aquisição para integrar Acervos maiores que se encontram em instituições de Ensino e/ou Pesquisa.

Entender a lógica de organização de uma biblioteca pessoal é fundamental do ponto de vista de uma Coleção ou série Documental. Aqui diferentes profissionais terão olhares diversos sobre estes itens e volumes que compõem uma biblioteca pessoal.
Bibliotecários, Arquivistas e Historiadores terão olhares múltiplos e diversos sobre este conjunto, que poderá e deverá ser considerado um conjunto documental.

Como tal, e até para que não se perca seu sentido de “fundo” documental não deveria ser mutilado numa organização técnica por meio de catalogação decimal. Que apesar de correta, do ponto de vista técnico, perderia o sentido que seu colecionador resolveu dar à sua biblioteca.

Um historiador e um arquivista preferirão manter a organização original dada por seu acumulador, pois assim manterão todas as conexões e hierarquias de seu colecionador original.

Como conjunto, uma biblioteca pessoal pode ser um excelente meio de preservação da memória individual, e como tal pode perfeitamente ser organizada tomando-se como princípio teórico-metodológico o chamado respeito aos fundos, que em linhas gerais não destrói esta ordem original no momento em que faz a organização deste conjunto documental.

Apesar de possuírem objetivos de recolher, preservar, organizar, catalogar, indexar conjuntos documentais cada instituição o fará de forma e premissas diversas: o bibliotecário tomará a informação que cada documento traz, ou seja, tomará o conjunto como uma soma de entidades autômanas.
arquivista estará preocupado com as conexões institucionais entre colecionador e funções administrativas e relações de prova que os documentos possam oferecer. Estará preocupado em entender de que forma tal acervo se relaciona às funções desempenhadas por seu colecionador.
Já um historiador analisará o conjunto documental como sendo um potencial fornecedor de Memórias, subjetividades e possibilidades históricas. Mas NUNCA considerará as partes como sendo autômanas. SEMPRE considerará as relações entre TODAS as partes.

A grande limitação que vejo em uma organização para uma biblioteca pessoal é a utilização de um padrão de organização decimal como estabelecida por bibliotecários.
É limitador por, pelo menos, 4 motivos:
1. A CCD (Classificação Decimal de Dewey) foi construída como uma forma de organização do Conhecimento Humano divido em 10 grandes áreas. Mas todas elas a partir de conhecimentos e áreas do século XIX. Isto por si só é um grande problema, pois apesar de suas atualizações elas representam uma divisão conceitual própria do século XIX, e com todos os seus vícios e problemas eurocêntricos.
2. Ela não é suficientemente abrangente para áreas intertrans e polidisciplinares, causando vários problemas para a quantidade de áreas que temos hoje em dia. Basta falarmos por exemplo em Memória Social, Sustentabilidade, Humanidades Digitais, Estudos Ambientais para ficarmos em apenas alguns temas. Não há uma caixa padrão onde todas estas áreas possam estar.
Atribuir uma organização decimal aqui é matar as relações entre as diferentes áreas.
3. E talvez a pior de todas as limitações é ela ser excludente, ou seja, é feita apenas para ser entendida por pares. O que inviabilizará a compreensão da biblioteca como um todo de forma intuitiva com valorização cultural da mesma.
4. Vivemos em tempos de desintermediação de informação. A partir do momento que tentamos hierarquizar de forma tão milimétrica o que são, não apenas livros, mas todo um conjunto de saberes, fazeres e construção cultural presente em uma biblioteca pessoal temos uma perda incomensurável.

Na concepção tanto arquivística quanto histórica o documento NUNCA é visto como uma unidade autônoma. Sua preservação, contextualização e análise só podem ser pensadas em conjunto, até para que não seja perdida sua inserção histórica, social, cultural.

Neste sentido, a biblioteca pessoal pode ser pensada como um ato de comunicação, já que seus volumes dialogam com as ideias e perspectivas de vida, emocionais e intelectuais de seu acumulador. Como um alfabeto, os volumes dispostos nos permitem entrever histórias e itinerários…tanto de vida como profissionais.
E há os diferentes suportes que a compõem e que não se inserem como volumes. Citamos acima o exemplo de fotografias, CDs, quadros, pinturas, objetos tridimensionais vários (medalhas, troféus, placas, álbuns, miniaturas), esculturas e até plantas!

O que é fundamental ter em mente ao se deparar com uma biblioteca pessoal é não perder de vista a trajetória pessoal e profissional de seu acumulador (um seu avatar). Ao ser incorporada em uma instituição estes traços precisam estar presentes e explícitos para que não se perca toda a riqueza intelectual e cultural que representa.

Falamos da Identidade que CADA UMA das bibliotecas pessoais possuem, e que se estes volumes forem subtraídos de seu conjunto e ordem orgânica dada pelo colecionador muito será perdido.

Um outro exemplo que gosto de citar e que já escrevi sobre isso são as Cavernas como Acervos Vivos: seu valor de Patrimônio Natural. Como um todo, elas compõem um grande acervo vivo de elementos diversos. E podem sim ser pensados uma biblioteca.

Há também os jardins pessoais onde o conjunto de plantas, folhagens, árvores, lagos e fontes compõem uma acervo que pode ser pensado também como uma biblioteca viva. Neste caso, compreender o colecionador, suas preferências técnicas, intelectuais, culturais por meio de sua biblioteca pessoal é fundamental. Aqui podemos citar o caso de Burle Marx. Não foram apenas seus jardins que entraram no processo de organização documental. TUDO o que diz respeito a ele foi considerado: a casa, biblioteca e obras diversas.
O acervo do Instituto Burle Marx reúne uma diversidade de formatos, materiais e técnicas, totalizando mais de 150 mil itens em diferentes coleções.

Abaixo temos uma representação gráfica dos números do acervo e seus tipos documentais que fazem parte do Acervo da Instituto Burle Marx:

Um exemplo específico que gostaria de destacar neste caso é o trabalho de conjunto e interdisciplinar para que não fossem perdidas todas as dimensões da pessoa, o intelectual, o artista, o cidadão. A complexidade de tais acervos é fenomenal e por isso as soluções PRECISAM ser pensadas de formas diversas. Existem ferramentas acessíveis e metodologia capaz de lidar com tais complexidades. Quase nada mais é impossível.

Note a observação sobre o acervo:

De tudo o que foi dito, é preciso frisar que a lida com bibliotecas pessoais requer por parte do profissional que a tratará uma profunda sensibilidade e rigor teórico metodológico, não para impor uma organização técnica limitadora. Será seu papel dar voz a alma que esta biblioteca já possui.

Aí está o segredo!

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Na ER Consultoria possuímos metodologia própria para utilizar as informações contidas nos documentos em diferentes tipos de acervos e/ou arquivos para Projetos de Memória Institucional com vistas ao fortalecimento de Identidade e Cultura Organizacional em empresas de diferentes segmentos e suas áreas de atuação. Além de ofereceremos metodologias e técnicas adequadas para a Preservação e Conservação de Acervos e seus suportes físicos ou digitais.

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Bibliografia de Referência:
BARROS, Moreno. O futuro da Biblioteconomia. Briquet de Lemos, 2016.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos pessoais são arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, ano XLV, n. 2, p. 26-39, jul.- dez. 2009.
CAMPOS, José Francisco Guelf (Org). “Arquivos Pessoais: experiências, reflexões, perspectivas”. Eventus 4. Associação de Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP), São Paulo, 2017
GOMES, Thulio. Os limites de Dewey. Blog Biblioo, 2013.
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A crise da memória, história e documento: reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora Unesp; Fapesp, 1999, p. 11-29.
REZENDE, Eliana Almeida de Souza. “Um Ensaio de Ego-História“, Revista Sustinere, UFRJ, 2016.
______________________________.  “Memórias digitais em busca da eternidade e o papel do profissional de informação em tempos de geração touchscreen“. Memória E Informação3(1), 36-48, 2019
RODRIGUES, A. M. L. “A teoria dos arquivos e a gestão de documentos”. Perspect. Ciênc. Inf., Belo Horizonte, v.11, n.1, p. 102-117, jan./abr. 2006

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Entenda o que são os Acervos Privados da Presidência da República

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Um tema que por muito tempo esteve quase que adormecido ganhou notoriedade a partir do escândalo das joias cravejadas em brilhantes que se tornaram conhecidas a partir de investigação da Polícia Federal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Nunca em toda a História da República um valor tão vultuoso teria sido dado como “presente” a um Presidente.

Em pouquíssimo tempo muitas dúvidas surgiram: afinal, o que são estes acervos? O que diz a legislação federal tem a dizer sobre o tema? Como a bibliografia técnica entende tais Acervos Privados da Presidência da República? Qual a diferença entre este e outros tipos de Acervo? Por que eles precisam ser denominados como Acervos Privados da Presidência da República e não simplesmente Arquivos ou Acervos? Quais são suas características e especificidades? Que relação existe entre tais Acervos e a Preservação e Conservação de Patrimônio Cultural Documental?

Vejamos:

Em períodos anteriores aos anos de 1980 já havia preocupação em relação ao destino de acervos que pertencessem aos então Presidentes da República, mas não havia uma legislação regulamentadora. Os acervos eram compostos em sua maioria por correspondências, registros fotográficos, sonoros, audiovisuais, entre outros.

Um pouco antes, ainda em princípios da década 1970, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas é criado com o objetivo de tratar acervos pessoais de personalidades.
Por este princípio e por um trabalho reconhecidamente metodológico de tratamento de acervos, foram convidados a participar do Projeto “Memória do Governo Sarney”, que havia sido Presidente da República no período entre 1985-1990. Diante desta situação foi formado um grupo específico para estudar as especificidades destes Acervos e as formas de tratá-lo e divulgá-lo, ao mesmo tempo em que se cuidaria de sua preservação e conservação.
Um dos produtos deste trabalho pode ser consultado na base de dados existente ainda hoje no Centro de Referência de Acervos Presidenciais que contam com acervos dos ex-Presidentes Manuel Deodoro da Fonseca (1889-1891) até o José Sarney (1985-1990).

Do ponto de vista jurídico porém, outras necessidades se impunham. E assim, duas normativas dos Acervos Privados da Presidência da República foram elaboradas. A 1ª é a Lei nº 8.394, de 30 de dezembro de 1991, assinada pelo então presidente Fernando Collor de Melo e que dispunha sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República e a sua regulamentação, por meio do Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Por falta de uma normatização mais específica em relação a valores e tipos de presentes ofertados, a Lei de 1991 e o Decreto de 2002 foram sendo utilizadas pelos Presidentes que as sucederam dentre eles Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (1º mandato).

Apesar da Lei e do Decreto ainda existiam algumas brechas que necessitavam ser melhor normatizadas, em especial no que concernia a valores e tipos de presentes que deveriam ser considerados privados e quais deveriam ser incorporados ao Patrimônio Nacional.
O primeiro momento em que o questionamento se tornou uma necessidade de regramento destes acervos quando estes foram alvo de litigio em 2016, devido à operação Lava Jato, e em função do questionamento do que deveria ser considerado presente pessoal do presidente e o que deveria ser incorporado ao Patrimônio da Nação, estabeleceu-se o chamado Acórdão/TCU nº 2255/2016.
Por este instrumento ficou determinado que os presentes recebidos em missões oficiais não seriam de caráter particular do Presidente, mas sim deveriam ser incorporados ao Estado Brasileiro, não sendo permitido ao mandatários que estes bens fossem tomados como pessoais. Na mesma ocasião, ficou determinado que estudos mais aprofundados fossem feitos, já que haviam poucos estudos sobre como tratar tais acervos e suas peculiaridades.
Ficou também decidido que poderiam ser considerados presentes personalíssimos itens como: camisetas de clube, bonés, bebida típica, um bordado, etc. Ou seja, algo de valor muito baixo e que fosse de uso exclusivo e pessoal.

Em síntese, o que tínhamos até o ano de 2016 as únicas regras claras que existiam sobre o que deveria ser considerado patrimônio da nação eram os presentem recebidos em cerimônias oficiais de troca de presentes entre nações. Com o Acórdão citado acima as regras ficaram muito mais claras, e a partir delas presentes recebidos por Lula e Dilma que não estavam dentro deste recorte legal foram incorporados ao Patrimônio da União.

Seguindo o Acórdão do TCU o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu 9.037 itens nos seus primeiros 2 mandatos (2003-2010) e teve que incorporar ao Patrimônio da União 559 presentes. A lista contendo fotografias destes presentes pode ser vista aqui

Dilma devolveu 144 presentes. Nos dois casos os presentes não encontrados foram ressarcidos em dinheiro.

É importante ressaltar que mesmo estando com os ex-presidentes os presentes estavam devidamente registrados no INFOAP (Sistema de Gestão de Acervos Privados da Presidência da República).
Nos dois casos houve a devolução e/ou reembolso nos casos de objetos não localizados, já que os dois mandatos foram exercidos antes do Acórdão de 2016 e haviam obedecido as regras da lei de 2002.

A Teoria Arquivística aplicada à Acervos Privados da Presidência da República

Ao falarmos de acervos precisamos compreender de que forma a teoria arquivística os trata. Consideramos, de acordo com o Dicionário Arquivístico, um Acervo aquela documentação que é originária da acumulação no desempenho de funções administrativas desempenhadas em um cargo público. O acervo está intimamente relacionado às funções que o mandante desempenha e por meio delas pode-se ter acesso à História desta instituição. Tais documentos são considerados assim não porque nascem para ser patrimônio ou documentos históricos, mas sim para cumprir seu papel em uma função pública.
Entretanto, quando pensamos em acervos privados da Presidência da República encontramos algumas dificuldades técnicas:

1. Em primeiro lugar, temos a distinção entre o que seja público e privado e os documentos produzidos nesta seara que seja de interesse público. Afinal, temos um ente físico desempenhando uma função pública, e portanto, vários itens que fazem parte de seu acervo podem ter características ora privadas, ora públicas dependendo de ocasiões específicas.

2. De outra sorte, os Acervos Privados da Presidência da República não representam uma coleção no seu sentido estrito, já que seu acúmulo e/ou reunião de documentos que os compõe não se dão por escolha direta de seu titular. Sua coleção é orgânica, mas nem sempre representa os critérios de seleção de seu titular.
Em geral, as coleções quando organizadas pelos seus próprios acumuladores possui uma lógica específica que se dá por interesses pessoais de seus possuidores. Neste sentido, elas espelham fielmente o que pensa e o que protagoniza seu acumulador. No caso analisado aqui não é uma coleção no seu sentido estrito já que cada documento chega de diferentes formas e por diferentes razões. Simplesmente são incorporados de uma forma cronológica a partir de visitas, cerimônias e encontros protocolares.

3. Ainda é preciso deixar claro que em relação aos documentos que chegam a ser incorporados nestes acervos não se pode dizer que sejam exclusivamente documentos arquivisticos, nem tão pouco podem ser considerados pessoais. Tais documentos possuem um caráter muito mais político e diplomático e seus suportes e significados deixam isso muito claro, especialmente pelos que ofertam os presentes. Muitos destes presentes são formas de demonstrar amizade ou divulgar a cultura de quem visita ou é visitado.

4. Tanto por sua forma como por seu acúmulo tais acervos estão longe de ser considerados acervos pessoais, já que para este caso específico há uma profunda e objetiva intencionalidade de seu proprietário em reunir, ter e manter determinados documentos em detrimento de outros. No caso de documentos pertencentes ao acervo privado da presidência não há esta possibilidade de seleção e escolha.
A forma de organização NUNCA é pessoal, como ocorre com arquivos pessoais onde o pensamento do seu titular fica espelhado em suas preferências por determinados documentos. No caso de Acervos Privados da Presidência da República é muito mais usual que a organização se dê de forma rotineira por servidores destacados burocraticamente para fazer tais tarefas. Esta organização obedecerá, de acordo com os servidores destacados perfis diversos que podem ser bibliográficos, museológicos, arquivisticos e/ou históricos.
A organização destes acervos acaba sendo cronológica e não consegue ser fechada como é de praxe em fundos arquivisticos. Alguns princípios da arquivística, biblioteconomia e museologia serão respeitados em sua organização, mas não em sua totalidade por conta da forma como estes documentos em diversos suportes dão entrada ao acervo.

5. Outra característica que diferencia estes Acervos Privados da Presidência da República de outros tipos de documentos arquivisticos é seu uso como sendo elemento de prova. Por tratar-se de um acervo específico como o da presidências ele provavelmente não estará inserido nesta modalidade de servir de prova, já que haverão outros documentos na Administração Pública que poderão oferecer tais subsídios e com muito mais riqueza de detalhes.

É preciso lembrarmos que a Constituição de 1988 esclarece em detalhes como se deve proceder sua guarda, sigilo e acesso com fins de preservação de memória e como forma de produção de conhecimento por meio de pesquisa, com documentos que denomino tridimensionais – que abarcam todo o conjunto do acervo do Palácio do Planalto que vai desde sua arquitetura e estruturas até suas tapeçarias, mobiliários, obras de arte diversas, paisagismo e jardins – as especificações não são tão pormenorizadas, e podem levar à pratica de erros como os que a reportagem acima revelou. Se os habitantes do Planalto não possuem sensibilidade e algum nível de respeito à coisa pública teremos tais problemas.

Os chamados Acervos Privados da Presidência da República possui uma equipe técnica e fixa que se responsabiliza por catalogar os diferentes documentos que passam a fazer parte do acervo desde o momento que o Presidente é empossado. Mas ao deixar a Presidência tais documentos não são considerados plenamente seus ou privados. Por possuírem interesse público e poderem ser utilizados para fins de pesquisa não podem ser vendidos sem antes ser oferecidos à União e nem podem ser remetidos para fora do país sem a autorização do Estado Brasileiro. Por estarem inseridos na Administração Pública, devem obedecer criteriosamente aspectos determinados em metodologias de acervos arquivisticos, bibliográficos e museológicos de acordo com seus suportes e obedecer rigorosamente os termos que se relacionam a tombamentos e descrição de objetos de arte quando for o caso (lembrando que há casos de telas, tapeçarias, vasos, pratarias entre outros objetos considerados obras de arte).

Por tudo isso, ex-presidentes criam Fundações ou Institutos para que tais acervos continuem a ser cuidados e acessados. Além disso, são eles que devem arcar com as custas de preservação, conservação e tratamento técnico documental destes acervos.

A Lei nº8.394, de 30 de dezembro de 1991 é a que disciplinou num primeiro momento os “Acervos Privados da Presidência da República” e que posteriormente teve o Decreto publicado em 2002 e o Acórdão citado acima pelo TCU em 2016

O texto da Lei nº8.394 deixa claro quais devem ser as ações e responsabilidades destes acervos como se nota a seguir:

Art. 5° O sistema dos acervos documentais privados dos presidentes da República terá participação do Arquivo Nacional, Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), Museu da República, Biblioteca Nacional, Secretaria de Documentação Histórica do Presidente da República e, mediante acordo, de outras entidades públicas e pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que detenham ou tratem de acervos documentais presidenciais.

        Art. 6° O sistema de acervos documentais privados dos presidentes da República, através de seus participantes, terá como objetivo:

        I – preservar a memória presidencial como um todo num conjunto integrado, compreendendo os acervos privados arquivísticos, bibliográficos e museológicos;

        II – coordenar, no que diz respeito às tarefas de preservação, conservação, organização e acesso aos acervos presidenciais privados, as ações dos órgãos públicos de documentação e articulá-los com entidades privadas que detenham ou tratem de tais acervos;

        III – manter referencial único de informação, capaz de fornecer ao cidadão, de maneira uniforme e sistemática, a possibilidade de localizar, de ter acesso e de utilizar os documentos, onde quer que estejam guardados, seja em entidades públicas, em instituições privadas ou com particulares, tanto na capital federal como na região de origem do Presidente ou nas demais regiões do País.

        IV – propor metodologia, técnicas e tecnologias para identificação, referência, preservação, conservação, organização e difusão da documentação presidencial privada; e

        V – conceituar e compatibilizar as informações referentes à documentação dos acervos privados presidenciais aos documentos arquivísticos, bibliográficos e museológicos de caráter público.

LEI NO 8.394, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1991 – QUE DISPÕE SOBRE A PRESERVAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E PROTEÇÃO DOS ACERVOS DOCUMENTAIS PRIVADOS DOS PRESIDENTES DA REPÚBLICA E DÁ PROVIDÊNCIAS

E foi a partir disso que, tanto o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como Luís Inácio Lula da Silva, instituíram Fundações que pudessem cuidar de todos estes conjuntos de documentos.

Acompanhe abaixo como cada um dos ex-presidentes lidou com seus acervos:

Abaixo, a própria fala do ex-presidente FHC sobre seu Instituto>

(…) Nasceu assim a ideia de fundar um instituto. Quis que ele fosse não só um centro de memória histórica, mas também um lugar de debates sobre a democracia e o desenvolvimento. Duas causas com as quais estive envolvido desde muito cedo. Desempenhando um ou outro papel, sua missão para mim seria uma só: contribuir para ampliar a compreensão e disseminar conhecimento sobre o País e seus desafios, com os olhos abertos para o mundo.
Inaugurado em maio de 2004, com um debate internacional que reuniu políticos e intelectuais do Brasil e do exterior, entre eles, Bill Clinton e Manuel Castells, o Instituto transformou-se em Fundação em 2010. O objetivo da mudança foi o de fortalecer o iFHC – hoje chamado Fundação FHC, como instituição perene, comprometida com a missão definida em sua origem(…)

FHC

Abaixo, temos as explicações sobre o Instituto Lula que abriga o Acervo do Presidente de seus dois primeiros mandatos, e que provavelmente abrigará o deste terceiro mandato:

“(…) O Instituto Lula tem a responsabilidade de cuidar do acervo que deixou Brasília junto com Lula em 2011, e o faz com toda transparência. São milhares de cartas, livros, CDs, fitas, quadros, gravuras, fotografias, álbuns, DVDs, presentes de altas autoridades, instituições, empresas e populares, assim como prêmios, condecorações e títulos que Lula recebeu. Todo esse material está catalogado, embalado e armazenado. Neste link você pode consultar todos os objetos do acervo. (…)”

No ano de 2021 foi assinada uma Resolução que dispôs sobre os Acervos Documentais Privados da Comissão Memória dos Presidentes da República e que segue como publicado em 09 de Dezembro de 2021, e que tenho certeza que após tudo o que ocorreu no caso dos diamantes será amplamente revisada e devida esclarecida.

O que continua sendo claro é o compromisso de que os documentos em diferentes suportes são de responsabilidade do setor de Memória da Presidência da República nos casos de acervos que serão incorporados à Nação e no casos dos documentos que compõe o Acervo Privado do Presidente da República deverão ter garantida sua segurança, preservação, conservação, tratamento técnico documental (higienização, descrição, indexação, digitalização, manuseio e acesso), eventualmente trabalhos de exposição e divulgação como forma de divulgar e preservar a Memória do Executivo.
Mesmo os documentos que por ventura sejam indexados em bases digitais ou que existam em tais formatos deverão ter garantidos aspectos relacionados à sua preservação digital e garantias de acesso. Lembrando que tais documentos possuem valor permanente e compõe o conjunto de documentação histórica do país.

A importância destes acervos e do cabedal necessário para tratar de todo este conjunto favorece a solicitação de profissionais técnicos qualificados para tratar adequadamente cada um destes acervos nos seus diferentes suportes. O que deixa claro a necessidade de uma equipe interdisciplinar.

A preservação de Patrimônio Cultural Documental e a Responsabilidade Histórica como forma de garantir fortalecimento da Memória do Executivo

Todo este debate sobre a importância dos Acervos Privados da Presidência da República serve para demonstrar de que forma a Administração Pública e a guarda documental necessitam de regras e procedimentos para que possam cumprir suas funções.
Se para a Administração Pública como um todo, temos a Gestão Documental e a elaboração de Tabelas de Temporalidade Documental instituindo prazos e locais de guarda, o caso dos Acervos Privados da Presidência da República necessitam de uma outra forma de regramento.

Conforme citei no artigo “Abandono e/ou Destruição de Patrimônio Cultural e Arquitetônico é crime!”

Diante tudo isso, e como forma de auxiliar tais chefes de Estado, há a previsão de destino de verbas para a realização de obras de preservação, conservação e até restauração tanto de obras arquitetônicas, quanto de peças de arte, mobiliários, paisagísticos.
Mas tudo isso simplesmente não se efetiva se as pessoas que tem sob sua responsabilidade esta tarefa não estejam sensibilizadas suficientemente e compreendam que cuidar da preservação, conservação e até restauração de um acervo tão rico e plural deve fazer parte de uma política de cultura da preservação de patrimônio, atendendo de perto ao que seja minha concepção de Responsabilidade Histórica.
É esta consciência de que o Presidente da República é o responsável direto a imprimir e propiciar que tais cuidados se efetivem e que isso seja parte de sua política cultural, já que estará cuidando de um legado que é de todos e que precisa ser entregue ao futuro. Daí a aplicação do conceito de Responsabilidade Histórica.

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Como dito acima, estes acervos possuem peculiaridades e é muito importante que apesar de haver Decretos e Acórdãos regulamentando, é essencial que haja profissionais que compreendam tais especificidades e consigam tratar toda a gama de documentos, muitos dos quais em formatos diversos, com necessidades específicas de higienização, identificação, catalogação, indexação e guarda com vistas à preservação (já que estes documentos possuem valor permanente, ou seja, NUNCA poderão ser eliminados). Tais Acervos Privados da Presidência da República se assemelham muito à concepção de Centros de Documentação e/ou Referencia, dada a similaridade de sua acumulação, bem como sua diversidade de temas e suportes, exigindo profissionais de áreas tão distintas como História, Diplomacia, Biblioteconomia, Arquivística, Museologia para ficar em apenas algumas áreas.

Por isso, FHC e Lula optaram para criar instituições, e que nelas pudessem abrigar os diferentes acervos e profissionais capacitados trabalhando na sua guarda e custódia. Além de trabalhar especialmente com divulgação das informações contidas nestes acervos,. FHC por seu perfil acadêmico colocou sua Fundação num âmbito bastante acadêmico e de formação. Lula por estar muito ligado à Movimentos Sociais tem um Instituto que trabalha muito próximo destes setores.

Cabe ressaltar que nos dois casos o tratamento técnico documental é realizado e toda a documentação obedece os termos de preservação e conservação dos documentos com esta importância. Mas nem por isso, necessitam ser idênticos em sua forma. Como mostrado nos vídeos acima, cada um deles encontrou uma forma de cumprir o que a legislação determina. Tal como ocorre com Centros de Documentação e/ou Memória não existe uma ÚNICA fórmula a ser usada. Cada equipe deverá encontrar a melhor forma de tratar a documentação e dar a ela sentido de acordo com seu titular presidencial e ao mesmo tempo encontrar maneiras de divulgar estes acervos ao mesmo tempo em que cuida de sua preservação e conservação.

É importante deixar muito claro que o compromisso de preservação e conservação de acervos envolve não apenas os presentes recebidos pelos Presidentes da República no desempenho de suas funções. A eles cabem também o cuidado com todo o conjunto composto pelo Palácio do Planalto, Palácio do Alvorada e todas as obras de arte e mesmo a parte arquitetônica destas edificações. Ainda no artigo “Abandono e/ou Destruição de Patrimônio Cultural e Arquitetônico é crime!” abordei esta questão e os maus tratos sofridos por tais obras arquitetônicas e muitas de suas obras durante o governo Jair Bolsonaro (2019-2022), e que tal descaso pode ser considerado crime e falta do cuidado com o que denomino Responsabilidade Histórica e como esta se mantém quando a Memória Institucional se fortalece a partir do conjunto de informações trazidas pelo conjunto de documentos presidenciais.

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** Referencias:
ABREU, A. A. Apresentação. In: SILVA, S. B. Os presidentes da república: guia de acervos privados. Rio de Janeiro: FGV, 1989.
ARQUIVO NACIONAL. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006
BRASIL. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras Providências. Diário Oficial da União, Brasília, 9 jan. 1991a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm. Acesso em 15/03/2023
BRASIL. Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002. Regulamenta a Lei no 8.394, de 30 de dezembro de 1991, que dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 ago. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4344.htm.Acesso em 15/03/2023
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2255/2016. Plenário. Relator: Walton Alencar Rodrigues. Sessão de 31 ago. 2016. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wpcontent/uploads/sites/41/2016/09/52_OUT4-TCU-TRALHAS-LULA.pdf. Acesso 15/03/2023
CRUZ, B. S.; BEZERRA, M. FHC na defesa de Lula: “cuidar de acervo é obrigação, mas
não há dinheiro”. 2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/02/09/fhc-na-defesa-de-lula-cuidar-de-acervo-e-obrigacao-mas-nao-ha-dinheiro.htm . Acesso em 15/03/2023
RODRIGUES, Georgete Medleg e LOPES, Bruna Pimentel. “Os acervos privados de presidentes da República no Brasil: entre as noções de propriedade privada e de interesse público” In: InCID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 10, n.1, p. 64-80, mar./ago. 2019 – DOI: 10.11606/issn.2178-2075.v10i1p 64-80

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Abandono e/ou Destruição de Patrimônio Cultural e Arquitetônico é crime!

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A esfera pertencente ao Patrimônio Cultural e Arquitetônico é vasta e podemos afirmar que existem muitos segmentos.
Para o efeito deste artigo, me concentrarei em um deles, que por ser único muitas vezes deixa de ser abordado, que é o Palácio do Planalto e da Alvorada e que fazem parte do conjunto arquitetônico composto pelos projetos de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

Por tudo isso, o Palácio do Planalto e da Alvorada são tombados como Patrimônio Cultural do país, sendo parte do Conjunto da Obras do Arquiteto Oscar Niemeyer, pelo IPHAN.

O Palácio do Planalto é de onde o Presidente da República governa de seu Gabinete e onde também estão alocados a Casa Civil, a Secretaria-Geral e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

O Palácio da Alvorada é a parte residencial onde o presidente e sua família moram. Apesar disso, ele possui mobiliários, obras de arte, tapeçarias, esculturas, quadros que são parte fixa do Palácio

Diante de tudo isso é sem dúvida, um espaço para Cultura e preservação de acervos que não pertencem ao Presidente da República, mas sim à Nação brasileira. Cabe ao Presidente em exercício zelar, cuidar e preservar todo este acervo e dar destino ao valor disponível como verba para realizar as manutenções e cuidados.

O Presidente da República é um inquilino por tempo provisório que no seu ‘contrato’ deve cuidar do espaço que lhe é destinado. Não para ser seu, mas para ser fiel depositário de um patrimônio que é da sociedade brasileira.

DESTRUIÇÃO E BANDONO DE jb ATINGEM TAMBÉM O ALVORADA

Infelizmente a passagem de Jair Bolsonaro (2019-2022) pelo Palácio do Planalto e da Alvorada significou uma igual metáfora para o estado de destruição, descaso e abandono deixado pelo Brasil em diferentes áreas como Saúde, Meio Ambiente, Educação, Cultura para ficar em apenas áreas mais sensíveis.
A situação foi alvo de denúncia em uma reportagem chamada por Janja Lula da Silva antes de realizar sua mudança para o Palácio. A reportagem concedida à jornalista política Natuza Nery, revelou um quadro de descaso, abandono e em alguns casos puro vandalismo com peças e objetos (link nas referências).

Dos danos mais comuns como tapetes rasgados, janelas quebradas, pisos de madeira necessitando de reparos, infiltração pelas paredes, tapetes e tapeçarias rasgados, seguiu-se à deterioração em alguns casos, e desaparecimento em outros, de obras de arte (como foi o caso de uma tela de Di Cavalcanti (com valor estimado em R$ 5 milhões de reais e que simplesmente foi retirada da Biblioteca onde estava e colocada em uma parede frontal, onde por 4 anos tomou sol inclemente e perdeu seus tons originais, o que significará a passagem por obras de restauro). Não apenas ele!

A pintura Orixás foi retirada do Planalto sofreu furos em sua tela provocado por caneta esferográfica. Para termos uma ideia do prejuízo o quadro medindo 3,61 metros de largura por 1,12 metro de altura, Orixás foi pintado por Djanira em 1966 e teria valor estimado atualmente entre R$ 1 milhão e R$ 4 milhões.

Orixás – Obra de Djanira – 1966

Em um inventário anterior haviam 133 peças de tapeçaria que incluem obras de Emiliano Di Cavalcanti, Concessa Colaço, Francisco Brennand e Kennedy Bahia. Além de peças de mobiliário assinadas por renomados artistas. Até os jardins que também são tombados sofreu ataques. Lula em seu outro mandato (2008) havia plantado Mandacarus (nome em tupi guarani de uma planta ornamental da família dos cactos e que tem um símbolo de resistência) com o então Ministros do Meio Ambiente, e jb os mandou arrancar.

Foi também no período do segundo mandato de Lula que os Palácios do Planalto e da Alvorada receberam sua 1ª grande obra de conservação e restauro desde sua inauguração e que durou todo o período compreendido entre 2008 e 2011.

Todo este episódio além de triste pode ser didático. Afinal, por que toda esta discussão? Qual é de fato a responsabilidade de um Chefe de Estado com o Patrimônio Cultural e no caso, também artístico, arquitetônico/estético sob sua responsabilidade?

Vejamos:

É considerado Patrimônio Cultural tudo aquilo que pode nos ajudar a compreender uma sociedade e o meio que a circunda.

Eliana Rezende Bethancourt

E se formos tomar o texto de lei, encontramos a definição em nossa própria Constituição de 1988, quando reconheceu que para além de patrimônios materiais também possuímos patrimônios imateriais, e que estão definidos no artigo 216 como segue, na letra da Lei:

“(…) Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (…)” (BRASIL, 1988).

Se podem ter origens tão diversas, é natural que nos tragam por meio de sua materialidade ou por meio de sua imaterialidade importantes e incontáveis formas de conhecermos melhor um povo e o seu meio. Em vários casos, não podem nem mesmo ser calculados em cifras monetárias, como ocorre no caso de patrimônios naturais, arqueológicos, ecológicos, paleontológicos, entre outros. E por isso, são de extremo valor, e àqueles a quem são oferecidos para realizar sua proteção e guarda necessitam ser cobrados em casos em que fique evidente desrespeito, descuido, vandalismo, subtração, roubo ou destruição realizado por diferentes meios: sinistros, roubos, ações de vandalismo, abandono ou mesmo relegar tais patrimônios a espaços ou locais que os coloquem em riscos provocados por terceiros ou pela própria força da natureza.

A especialidade dos Palácios do Planalto e da Alvorada é referida por (BISPO, 2014) quando comenta sobre sua concepção arquitetônica, estética e construtiva:

“(…) na concepção e construção do Palácio do Planalto é possível observar a influência dos condicionantes históricos e estéticos do ideário moderno na prática projetual do arquiteto Oscar Niemeyer, especialmente ao destacar os aspectos plásticos e estruturais, as técnicas e materiais construtivos empregados em revestimentos, vedações e elementos de composição, as relações existentes entre arquitetura, urbanismo, paisagismo e obras de arte integradas.
Paralelamente, ressaltamos as principais características essenciais, presentes desde os primeiros estudos elaborados por Niemeyer no processo de definição da obra, tais como amplitude e transparência espacial, leveza, pureza, visibilidade entre interior e exterior da obra, simplicidade geométrica, emprego de soluções compactas, setorização de usos, hierarquia entre elementos, padronização de tipos de revestimentos e vedações, distribuição espacial definida a partir da modulação estrutural, proporção, simetria e equilíbrio através de relações matemáticas, da geometrização das formas, da linearidade da superfície e da organização geométrica das partes individualmente e entre si composição baseada em premissas da arquitetura moderna e em fundamentos da linguagem clássica, busca por unidade formal e estética com outros palácios de Brasília. (…)”. (BISPO, 2014)

Ou seja, o Palácio do Planalto e todo o conjunto de prédios criado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, agrega mais do que arquitetura e estética a um tempo só. É produto de um tempo, de uma tecnologia, de uma escola de pensamento estético e visão de mundo. Por isso, único e admirável!

É também preciso salientar que o Palácio do Planalto tomado no conjunto dos demais monumentos compõe, por meio de sua estética e volumetria, uma imagética própria que relaciona visualmente estas obras, que conforme Bispo (2014) são:

“(…) Enquanto marco simbólico, a cidade derivada do Plano Piloto concebido por Lucio Costa constitui um exemplar histórico e singular do urbanismo moderno, vinculado aos princípios expressos na Carta de Atenas de 1943 e aos preceitos do “Modo de pensar o Urbanismo” de 1946 de Le Corbusier (…).
A “preservação imagética” garante a manutenção das relações visuais, formais e compositivas ao longo da trajetória histórica de cada edificação que compõe este conjunto monumental que carrega consigo a imagem mais emblemática da capital.
Trata-se, portanto, de uma relação histórica visual desenhada por intelectuais de modo que a visualidade do objeto sobrepõe-se à funcionalidade do objeto (…)”.

Diante tudo isso, e como forma de auxiliar tais chefes de Estado, há a previsão de destino de verbas para a realização de obras de preservação, conservação e até restauração tanto de obras arquitetônicas, quanto de peças de arte, mobiliários, paisagísticos.

Mas tudo isso simplesmente não se efetiva se as pessoas que tem sob sua responsabilidade esta tarefa não estejam sensibilizadas suficientemente e compreendam que cuidar da preservação, conservação e até restauração de um acervo tão rico e plural deve fazer parte de uma política de cultura da preservação de patrimônio, atendendo de perto ao que seja minha concepção de Responsabilidade Histórica.
É esta consciência de que o Presidente da República é o responsável direto a imprimir e propiciar que tais cuidados se efetivem e que isso seja parte de sua política cultural, já que estará cuidando de um legado que é de todos e que precisa ser entregue ao futuro. Daí a aplicação do conceito de Responsabilidade Histórica.

Se com os documentos privados dos Presidentes da República a Constituição de 1988 esclarece em detalhes como se deve proceder sua guarda, sigilo e acesso com fins de preservação de memória e como forma de produção de conhecimento por meio de pesquisa, com documentos que denomino tridimensionais – que abarcam todo o conjunto do acervo do Palácio do Planalto que vai desde sua arquitetura e estruturas até suas tapeçarias, mobiliários, obras de arte diversas, paisagismo e jardins – as especificações não são tão pormenorizadas, e podem levar à pratica de erros como os que a reportagem acima revelou. Se os habitantes do Planalto não possuem sensibilidade e algum nível de respeito à coisa pública teremos tais problemas.

O chamado acervo privado da Presidência possui uma equipe técnica e fixa que se responsabiliza por catalogar os diferentes documentos que passam a fazer parte do acervo desde o momento que o Presidente é empossado. Mas ao deixar a Presidência tais documentos não são considerados plenamente seus ou privados. Por possuírem interesse público e poderem ser utilizados para fins de pesquisa não podem ser vendidos sem antes serem oferecidos à União e nem podem ser remetidos para fora do país sem a autorização do Estado Brasileiro. Por estarem inseridos na Administração Pública, devem obedecer criteriosamente aspectos determinados em me metodologias de acervos arquivisticos, bibliográficos e museológicos de acordo com seus suportes e obedecer rigorosamente os termos que se relacionam a tombamentos e descrição de objetos de arte.

Por tudo isso, ex-presidentes criam Fundações ou Institutos para que tais acervos continuem a ser cuidados e acessados. Além disso, são eles que devem arcar com as custas de preservação, conservação e tratamento técnico documental destes acervos.

A Lei nº8.394, de 30 de dezembro de 1991 é a que disciplina os “acervos privados dos presidentes da República”.

O texto da Lei deixa claro quais devem ser as ações e responsabilidades destes acervos como se nota a seguir:

Art. 5° O sistema dos acervos documentais privados dos presidentes da República terá participação do Arquivo Nacional, Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), Museu da República, Biblioteca Nacional, Secretaria de Documentação Histórica do Presidente da República e, mediante acordo, de outras entidades públicas e pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que detenham ou tratem de acervos documentais presidenciais.

        Art. 6° O sistema de acervos documentais privados dos presidentes da República, através de seus participantes, terá como objetivo:

        I – preservar a memória presidencial como um todo num conjunto integrado, compreendendo os acervos privados arquivísticos, bibliográficos e museológicos;

        II – coordenar, no que diz respeito às tarefas de preservação, conservação, organização e acesso aos acervos presidenciais privados, as ações dos órgãos públicos de documentação e articulá-los com entidades privadas que detenham ou tratem de tais acervos;

        III – manter referencial único de informação, capaz de fornecer ao cidadão, de maneira uniforme e sistemática, a possibilidade de localizar, de ter acesso e de utilizar os documentos, onde quer que estejam guardados, seja em entidades públicas, em instituições privadas ou com particulares, tanto na capital federal como na região de origem do Presidente ou nas demais regiões do País.

        IV – propor metodologia, técnicas e tecnologias para identificação, referência, preservação, conservação, organização e difusão da documentação presidencial privada; e

        V – conceituar e compatibilizar as informações referentes à documentação dos acervos privados presidenciais aos documentos arquivísticos, bibliográficos e museológicos de caráter público.

LEI No 8.394, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1991 – Que dispõe sobre a Preservação, Organização e Proteção dos Acervos Documentais Privados dos Presidentes da República e dá providências

FHC ao nos relatar sobre seu Instituto circunstancia como o cumprimento desta lei o fez criar seu Instituto:

“(…) Nasceu assim a ideia de fundar um instituto. Quis que ele fosse não só um centro de memória histórica, mas também um lugar de debates sobre a democracia e o desenvolvimento. Duas causas com as quais estive envolvido desde muito cedo. Desempenhando um ou outro papel, sua missão para mim seria uma só: contribuir para ampliar a compreensão e disseminar conhecimento sobre o País e seus desafios, com os olhos abertos para o mundo.

Inaugurado em maio de 2004, com um debate internacional que reuniu políticos e intelectuais do Brasil e do exterior, entre eles, Bill Clinton e Manuel Castells, o Instituto transformou-se em Fundação em 2010. O objetivo da mudança foi o de fortalecer o iFHC – hoje chamado Fundação FHC, como instituição perene, comprometida com a missão definida em sua origem.

Transcorridos mais de 18 anos da sua criação, foram realizados mais de 500 debates, mais de 40 livros publicados, organizados, digitalizados e colocados à disposição do público. Ao todo, cerca de 115 mil documentos do meu acervo.

Estou convicto de que valeu a pena criar a Fundação FHC. (…)”

Fundação FHC

O Instituto Lula informa sobre seu acervo:

“(…) O Instituto Lula tem a responsabilidade de cuidar do acervo que deixou Brasília junto com Lula em 2011, e o faz com toda transparência. São milhares de cartas, livros, CDs, fitas, quadros, gravuras, fotografias, álbuns, DVDs, presentes de altas autoridades, instituições, empresas e populares, assim como prêmios, condecorações e títulos que Lula recebeu. Todo esse material está catalogado, embalado e armazenado. Neste link você pode consultar todos os objetos do acervo. (…)”

Instituto Lula
Instituto Lula

Como se observa no caso dos dois Institutos que abrigam os acervos dos ex-presidentes vemos que há um olhar sobre a forma como o acervo e os objetivos que os sustentam. FHC que vem de uma tradição muito mais acadêmica voltou sua atenção para seu conjunto de documentos e o acervo como um todo com uma forma específica não apenas de tratar documentos, mas também de gerar e produzir conhecimento. À medida que o tempo passa mais esta dimensão se solidifica.

No caso de Lula, por ter uma trajetória muito mais engajada à movimentos sociais tanto seu acervo quanto seus objetivos se refletem nas ações desenvolvidas e na forma como a documentação está reunida.

O que é uma obrigação tanto em um como em outro caso é o trato com a documentação, sua preservação, conservação e disponibilização para diferentes fins.
Agindo assim, ambos cumprem o que está estabelecido em Lei, e retornam para a sociedade o que lhes é devido: os acervos e as informações nele contidas.

Tomar conhecimento de tudo o que envolve a curadoria, guarda, preservação e acesso aos acervos da Presidência da República e todo o conjunto arquitetônico é fundamental para que todo o circuito que abriga tarefas de preservação e conservação não se transforme em crime, quer por ignorância, quer por dolo.

Também e fundamental, para que o Presidente em exercício e sua família não tomem o que é de toda a Nação como seu, ou o que é público seja tomado como privado. Os processos de Responsabilidade Histórica exigem respeito a estas instâncias, e para este caso a própria Constituição traz a letra da Lei.

___________________________

* Observação Importante: Este artigo começou a ser escrito antes da tentativa de Golpe e de ataque aos Três Poderes em Brasília em 08 de Janeiro de 2023. Por força de tudo o que ocorreu e ainda impactada por toda a destruição, optei por concluir este artigo sem menções aos fatos ocorridos e destinarei um outro artigo para abordar os fatos, impactos e simbologias daquele ataque. Como historiadora não gosto de escrever no calor da hora e conto com que ao seu tempo e ora eu seja capaz de falar a respeito.

** Referências:

BISPO, Alba Nélida de Mendonça. “Dos processos de valoração do patrimônio moderno às práticas de conservação em Brasília: o caso do restauro do Palácio do Planalto”. Dissertação (Mestrado) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 2014.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Ed. UNESP, 2001
NERY, Natuza. Reportagem: “Janja mostra os danos que encontrou no Palácio da Alvorada; veja vídeos e fotos

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Cavernas como Acervos Vivos: seu valor de Patrimônio Natural

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Recentemente nos defrontamos com mais um ataque ao meio ambiente em relação a um decreto que entre outras atrocidades autoriza a destruição de qualquer tipo de caverna para a construção de empreendimentos considerados de “utilidade pública”. Bastariam apenas supostas compensações e em virtude do benefício econômico qualquer outra perda seria justificada.
Até a assinatura deste decreto presidencial nº 10.935/2022, as chamadas cavidades subterrâneas de alta relevância, estavam inseridas sob a proteção de unidades de conservação. Ao ser assinado o decreto a proteção que estas unidades teriam contra tais empreendimentos fica anulado. Não apenas isso: até mesmo o cinturão em torno destas cavidades ficam sob risco. A situação fica ainda pior quando sabemos que boa parte destas cavidades estão situadas em áreas de mineração, o que levaria a sua completa extinção.

Enrico Bernard, que também é presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (SBEQ), voltada para pesquisa sobre morcegos explica o que tudo isso pode significar: “Se baixarem uma norma que mineração é atividade de utilidade pública, isso abre a porteira para que os órgãos ambientais estaduais passem a considerar toda a atividade de mineração de utilidade pública e possam autorizar os impactos nas cavernas de máxima relevância. A boiada está em curso”.

Para entendermos o perigo deste conceito de declaração de “utilidade pública” por parte do empreendimento basta vermos o leque amplo a que se refere: sistema viários, mineração, radiodifusão, telecomunicações, energia, saneamento. Se o empreendedor “provar interesse público” está autorizado a simplesmente destruir e depois quem sabe fazer uma “compensação”. Mas a importância destas cavidades está exatamente por serem singulares e únicas, e portanto, por mais que se tente NUNCA uma substitui ou compensa a outra.

É importante pontuar que as chamadas cavidades naturais subterrâneas (cavernas) apesar de serem dividas em máxima, alta, média e baixa relevância apresentam diferenças substanciais entre si, e NENHUMA delas é idêntica à outra. Em geral, estas cavidades encontram-se em locais que compõem em suas proximidades até sítios arqueológicos. Um exemplo recente deste tipo de local foi a necessidade de embargo de uma obra que tinha como objetivo a construção de uma fábrica da cervejaria Heineken em Minas Gerais. A obra foi embargada pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) por risco de danos ao sítio arqueológico onde foi localizado o crânio de Luzia, o mais antigo fóssil humano encontrado nas Américas.

A importância destes espaços e seu entorno são essenciais para que diversas formas de vida se desenvolvam. Além disso, os espaços internos dessas cavidades de alta relevância possuem camadas de informações e registros de outras eras e dos seres que lá habitaram. São documentos vivos de um outro tempo. Guardam segredos de séculos de história. São portanto, Patrimônio Natural e Ambiental, e em vários casos também Patrimônio Arqueológico.

Por exemplo, a SEBEQ (Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros) também se posicionou contra as mudanças e afirmou que elas gerarão “impactos enormes e irreparáveis”:
Literalmente, milhares de espécies que vivem em cavernas, incluindo espécies criticamente ameaçadas de extinção e espécies hiperendêmicas (com ocorrência em uma única caverna, por exemplo) estão em risco mais elevado com a publicação do Decreto 10.935. Mais além, os serviços de ecossistema prestados por estas cavernas como, por exemplo, o abastecimento de aquíferos e a contenção de pulsos de inundação, poderão ser gravemente comprometidos“, disse em nota emitida.

Não bastasse isso, o decreto também alterou as definições do seja uma cavidade de alta relevância. A redução de critérios foi de 11 para apenas 7 quesitos. Mais grave ainda é retirar da mão de técnicos do ICMBio, através do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (CECAV), avaliar as cavidades e autorizar ou não o que quer que fosse. Agora esta responsabilidade fica nas mãos de órgão licenciador, ou seja, fica nas mãos de quem não tem as devidas condições técnicas de avaliação. E, nem imagina quais sejam.
Mas fica ainda pior: foi retirada a obrigatoriedade de se preservar área de 250 m entorno da caverna (este diga-se de passagem, era uma das queixas recorrentes de mineradoras. O presidente da SBEQ comentou: “É uma mudança de legislação que atende como uma luva os interesses das mineradoras”, acrescenta. O pesquisador questiona ainda a falta de transparência para a elaboração do decreto. “Quem é o responsável por essa redação? Porque os setores da sociedade interessados não foram chamados para essa discussão? Esse decreto foi unilateral, sem discussão técnica nenhuma”.

Dito tudo isso, é fundamental compreendermos a importância de, como profissionais ligados à diferentes áreas entre Ciências Humanas e Aplicadas e as Ciências da Natureza, termos a dimensão do que significa a preservação e conservação destas unidades consideradas e definidas como Patrimônio Natural.

Do ponto de vista das definições que se aplicam à Preservação e Conservação, um aspecto muito caro a tais profissionais é de considerar que tais conjuntos formam o que na minha área de atuação são conjuntos documentais. Trazem como inscrições de um passado remoto sua ancestralidade, bem como sua riqueza inscrita nos biomas que mantém, nas camadas de rochas e nos cursos de águas que juntos compõe um habitat único, e em alguns casos, intocados há séculos.

As rochas e seus sedimentos no interior destas cavernas são testemunhas de milhares de anos de história podem ser “lidas” por meio dos elementos químicos que são depositados pela água. Como em textos e subtextos trazem informações sobre a formação deste ambiente, seu clima e o conjunto de condições que propiciaram seu surgimento desde um passado longínquo até os dias de hoje. Estão carregados de informações sobre um passado que só podemos alcançar por meio de sua mediação.

Para além disso, tais cavernas podem se converter em grandes depósitos de fósseis e outros materiais arqueológico exatamente por sua função de abrigo para diferentes animais e seres humanos. Equivalem a grandes acervos que depositam diversos tipos de informação em seu interior.

A degradação que temos assistido em diferentes Patrimônios, sejam eles Culturais, Documentais, Naturais ou Arqueológicos, nos mostram que cada vez mais precisamos entender e lutar para que sejam mantidos para as gerações vindouras. Mantê-los e protegê-los deve ser missão número um de quem compreende seu papel de Responsabilidade Histórica, Social e Civilizacional.
Infelizmente, interesses escusos, imediatistas e econômicos se sobrepõem ao que deveria ser o interesse social mais geral e abrangente e o compromisso de preservação cultural da humanidade em seu sentido mais amplo.

O tema pertence a todos, e só será devidamente tratado e cuidado se entendermos que, enquanto profissionais mesmo de áreas diversas, temos que saber de que forma auxiliar nos debates de educação patrimonial desde muito cedo. Só formando gerações de pessoas que entendem a complexidade do humano e da natureza que podemos de fato fazer a diferença.

Quando permitimos que patrimônios sejam destruídos pelo fogo, pelo abandono, pela ingerência, descaso ou ganância estamos fadados ao esquecimento.
Tempos atrás escrevi um outro artigo onde falei sobre a destruição de vários patrimônios culturais/documentais de nosso país. Intitulado “Patrimônio Cultural e Responsabilidade Histórica: uma questão de cidadania” abordei os tristes episódios do Museu Nacional, Museu da Língua Portuguesa, Instituto Butantã, Arquivo Histórico do Hospital do Juqueri, Tribunal de Justiça de São Paulo, Cinemateca, para ficar em apenas alguns exemplos.
Em todos estes casos, ficou claro que a destruição NUNCA acontece em um determinado dia ou ano. Em geral, o abandono, o descaso vão atingindo o local de forma gradativa, sorrateira e ininterruptamente até que um dia o ‘sinistro’ acontece. O que é uma inverdade, já que em todos os casos os sinais são claros e políticas de abandono eram diuturnamente aplicadas pelos que teriam a obrigação de zelar e proteger estes patrimônios.

Todos os patrimônios pertencem a Humanidade. E, portanto, cuidar deles deveria significar responsabilidade de cada cidadão: cobrando, fiscalizando e agindo sobre os que devem fazer seu trabalho.

Como em todo debate, não há consenso entre conservacionistas e preservacionistas em assuntos relativos ao ambiente e a natureza. Tal como ocorre na área de Arquitetura e Monumentos existem basicamente duas linhas diametralmente opostas.

Explico:

Os Conservação aplicada a este debate de Patrimônio Natural possui uma atitude de que pode-se fazer uso de recursos naturais de forma responsável e parcimoniosa, no sentido de compreender que os recursos são escassos e finitos. Não colocam objeção à exploração dos recursos naturais com diferentes fins. Como em todos os casos, temos o que são criteriosos e há os que simplesmente barbarizam fingindo ser um conservacionista consciente.
De outro lado, há os preservacionistas que possuem um olhar bem mais radical, que seria manter tais locais intocados sem a permanência ou interferência do elemento humano.

Diferente do que ocorre com Patrimônios Documentais e Culturais, muitas vezes podemos ter uma estratégia híbrida e mesclar conservação e preservação, resultando no que chamamos de conservação preventiva. Ações constantes realizadas no tempo que previnem deterioração e podem inclusive prevenir restaurações.

Por não ser da área de Ciências da Terra tenho dificuldades de opinar sobre o que fazer aqui. Mas sei que permitir um uso desregrado e sem critérios levará a perdas irreparáveis e permanentes deste Patrimônio. E contra isso devemos mover todas as formas de debates e esforços.

A situação em torno de decreto que põe em risco as cavernas me fez sentir a mesma sensação que tenho diante de um acervo que está em vias de ser destruído. Comparo tais cavernas como verdadeiros tesouros de um outro tempo e como documentos de uma história que há muito se passou, mas que ao mesmo tempo interage e garante vidas futuras. Perde-las por ignorância ou ganância é uma temeridade.
Sinto como se estivéssemos diante da iminência de uma destruição em série e completamente irreversível se ficarmos passíveis a isso.

O mesmo aconteceu e tristemente ainda esta ocorrendo com os incêndios na Amazônia, onde fauna e flora ardem e exemplares vivos da nossa farmacea estão sendo completamente dizimados. São igualmente acervos vivos gigantescos de espécimes que ainda não estudamos, catalogamos ou deciframos e que poderão estar extintos. A nossa grande biblioteca verde está simplesmente virando cinzas.

Os acervos e arquivos não precisam estar fechados em instituições, em arquivos ou bibliotecas. Podem ser muito mais amplos e abrangentes. Entender tudo o que nos rodeia como um grande acervo vivo deve nos inculcar um sentido de responsabilidade cidadã. O que significa dizer que precisamos ter um olhar abrangente com o que ocorre em nossa volta e o quanto somos responsáveis por tais perdas, quer como profissionais, quer como cidadãos conscientes.

Como a ER Consultoria pode ajudá-lo?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria para utilizar as informações contidas nos documentos em diferentes tipos de acervos e/ou arquivos para Projetos de Memória Institucional com vistas ao fortalecimento de Identidade e Cultura Organizacional em empresas de diferentes segmentos e suas áreas de atuação. Além de ofereceremos metodologias e técnicas adequadas para a Preservação e Conservação de Acervos e seus suportes físicos ou digitais.

Se você possui dúvidas sobre como tratar seus diferentes patrimônios entre em contato e encontraremos uma forma de auxiliá-lo quer por uma Assessoria Técnica Especializada ou por meio de Capacitações Técnicas ao seu corpo de profissionais.

Conheça nosso Portfólio de Cases e o que nossos clientes tem a dizer

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* Referências:
Convenção para a protecção do património mundial, cultural e natural
Choay, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. Unesp, 2001
Zanirato, Silvia Helena e Ribeiro, Wagner Costa. “Patrimônio Cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 51, p. 251-262 – 2006 (acessado em 20/01/2021)
Jornal da USP, 16 de Julho de 2021, matéria de Herton Escobar publicada com o título: “Cavernas do Brasil: um tesouro subterrâneo a ser descoberto, mas já ameaçado“.

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Quem precisa de Arquivo?

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Uma pergunta que chega parecer sem sentido. Afinal, quem precisa de arquivos? Para quê servem? 

Talvez devêssemos começar este artigo esclarecendo porque de sua importância. 

Para facilitar, poderíamos dizer a quem servem e porque.

Em primeiríssimo lugar: os arquivos servem às sociedades: presentes, passadas e futuras. 

Desde sua origem os arquivos são para uso social. Afinal, é através do acúmulo de seus registros que sabemos de onde viemos, como vivemos e para onde fomos.

Os registros guardados em arquivos cumprem funções probatórias e administrativas enquanto são utilizados, e transformam-se em verdadeiros detentores das memórias institucionais e históricas das pessoas, organizações e sociedades que os produziram.

Guardam o que se chama patrimônio das civilizações. Foi assim com sumérios, egípcios, gregos, romanos, e é assim até hoje. 

Dito de outra forma, para arquivos, NÃO EXISTE ‘ARQUIVO MORTO’!

O arquivo NUNCA pára de fornecer informações, e em vários casos, até mesmo sua ausência ou fragmentação revela detalhes fundamentais. Saber ler até nas ausências é uma virtude dos que sobre eles se debruçam.  

Sempre serão objeto de guarda, consulta e prova, e poderão servir à indivíduos, bem com às sociedades e civilizações inteiras.

Portadores de imensa capacidade de gerar conhecimento, são vozes do passado que se revelam ao bom questionador. Estabelecem pontes com o futuro por meio de suas notas pretéritas assentadas em um presente próximo ou distante.
Por isso, dizemos que os arquivos são fontes de pesquisa que se prestam à inúmeras áreas de conhecimento além, claro, da própria administração. São representantes da memória individual, tanto quanto da memória coletiva e administrativa de povos e nações, quando pensado de forma mais ampla, e de forma mais restrita representam organizações e instituições, que atuam em determinado ramo ou fração da sociedade.

Por seu caráter de prova os documentos de arquivo estão no rol de Direitos Humanos e do acesso à informação, já que quanto maior o acesso à informação, maiores serão as possibilidades de exercício da cidadania por meio de escolhas adequadas. 

Apesar disso, e de toda a sua importância, os arquivos são muito maltratados: descuidados, abandonados, relegados à inúmeras mostras de desrespeito como incêndios, vandalismos, roubos, enchentes, poeira, sujeira… ou mesmo confundidos com material de descarte ou almoxarifado. Mesmo em nossos dias é comum vermos arquivos e seus profissionais existirem em locais longe dos olhos: em subsolos, embaixo de escadas, em armazéns de despejo, quartos escuros, insalubres, caixas de papelão, estantes tortas, enferrujadas e sob ataques de roedores e insetos. Tudo ocorrendo com a anuência e ‘vista grossa’ de supostos gestores, que procuram manter a máxima de que “longe dos olhos, longe do coração”. Ou seja, se mantiver tudo bem escondido não há problema algum.   

Diante disso, é fundamental compreender que a responsabilidade de guarda arquivística é tarefa fundamental para TODA e QUALQUER instituição, já que existe legislação vigente para como, quando e como tais documentos necessitam ser guardados e as formas em que se deve dar acesso aos mesmos.

Falo isso, pois muitos acreditam que documentos digitais estão em melhores condições de guarda. Em verdade, isso é um ledo engano. Não é por não vermos o acúmulo de lixo digital que temos, que significa que estamos obedecendo corretamente critérios técnicos para esta área tão importante dentro de qualquer instituição. 

Os documentos de arquivo não são compostos apenas de papeis ou atos administrativos. Há uma gama imensa de outros suportes: como fotografias, portais, sites, audiovisuais que necessitam de especificações técnicas adequadas para guarda e acesso, e infelizmente o que temos em muitas instituições são um saco de gatos contendo de tudo. Mas, ao necessitar de UM DOCUMENTO, ninguém o consegue localizar. 

É fundamental que as instituições, sejam elas públicas, privadas ou mistas entendam definitivamente que informação boa é a que se consegue encontrar, e que NÃO SÃO ferramentas de GED que farão isso! Todo um trabalho que deve preceder a aquisição de ferramentas deve ser feito ANTES. 

A importância de um trabalho preliminar para a guarda documental é fundamental se o objetivo for dar acesso à informação contida nos diferentes documentos que compõe um arquivo. Além disso, estabelecer prazos para sua guarda, mesmo antes de os criar é uma forma eficiente de trazer racionalidade e transparência às ações administrativas, minimizando gastos desnecessários com guardas que excedam o tempo estabelecido em legislação vigente. Guardar mal e equivocadamente representa custos extras com mão-de-obra, tecnologia e outros recursos, espaço físico e digital para armazenamento. 

Resumindo: Gestão Documental começa muito antes de você produzir um documento, e portanto, não se encerra quando o coloca numa pasta, caixa ou o digitaliza. 

Aprender isso é a diferença entre fazer o que é correto e não se arrepender depois.  

Como a ER Consultoria pode ajudá-lo?
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* Post escrito em comemoração ao Dia do Arquivista, comemorado todos os anos em 20 de Outubro

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Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Há muitas formas de visitar a morte.
Às vezes, a visitamos pela experiência sofrida assistindo a debilidade que avança, os dias que chegam ou o convívio com uma sentença de morte provocada por uma doença sem cura, ou um acidente que ceifa vidas e planos.
A experiência sentida para todos estes casos é a da perda ou dor. Paira sobre nossas mentes e nos faz saber que, mesmo em sua ausência, sua presença pode ser constante enquanto não chegar.
Seu lugar em nossas vidas está também nos espaços que ocupa. Espaços simbólicos, emocionais ou físicos, não importam. Os tempos e espaços destinados para a morte em nossas vidas ocupam nossos corpos, mentes e até mesmo lugares específicos para seu culto/lembrança.

Dentre os lugares de morte o cemitério talvez seja o de maior representatividade no mundo. E aqui, independente de culturas ocidentais ou orientais é um espaço do Sagrado e de reverência ao que ele guarda. 

Os cemitérios são exatamente o local, e a cidade dos mortos, no mundo dos vivos. 
Representam esta cidade que está calada e desenhada, porém viva como um recado, uma lembrança, um alerta. É arquitetura esquadrinhada, que possui seus lugares e hierarquias e até mesmo imposição de posições sociais, prestígio, status e valores que podem ser observados através de todo um conjunto de símbolos que chamamos de arquitetura tumular. Exemplos não faltam de elementos desta arquitetura de vivos para o mundos dos mortos, e neste ponto apresento alguns destes elementos que utilizamos como estudo na área que denominamos em História de Cultura Material.
Os jazigos, seus túmulos e toda a referência mobiliária e de objetos prestam-se a um excelente meio de análise e abordagem de um tempo: oferecem ao pesquisador referências interessantíssimas e muitas vezes ausentes em outros tipos de fontes como: nomes, datas de nascimento e morte, preferências sociais, culturais e relações familiares trazidas por meio de dedicatórias e despedidas onde os nomes e laços de parentescos ficam expostos.
Convertem-se em acervos “vivos” da Memória de um tempo e das vidas de seus ocupantes, os seus laços e suas relações.

Há todo um conjunto de signos iconológicos que favorecem a interpretação sobre o período de sua produção e em qual contexto social e cultural foi utilizado como representação. Em tempos mais recentes as fotografias surgem como outro elemento carregando mais informações sobre o morto. Sua fisionomia, e em alguns casos, sua sisudez ou sorriso nos desafiam o olhar. Fixados num determinado espaço/tempo nos dirigem o olhar,  nos inquirem… Recortados em um contexto são imagem cristalizada de um projeto que se interrompeu. A imagem, por excluir a morte, é carregada de vida e energia. Talvez por isso, tenhamos a empatia do olhar que se comunica e troca. É impossível não pensar sobre aquele rosto, a história que tinha e como chegou ali: alguns muito cedo, outros após uma existência plena com cônjuges, filhos, netos e até bisnetos.
Englobam-se no que chamamos arquitetura tumular a arte representada pelas esculturas que ornamentam os túmulos. Representam visões de mundo de um tempo, de uma sociedade, de grupos familiares e pessoas, fornecem elementos caros à construção de uma memória de si e do seu entorno social. Um conjunto rico, e muitas vezes valiosíssimo de expressão artística, fazendo muitos cemitérios ter programas de visitas guiadas por seus túmulos para amantes desta arte ou para acadêmicos de diferentes áreas.

Muito interessante entender que os cemitérios, tal como as cidades tem uma história de implantação e definição tanto estética quanto dos seu lugares e limites no tecido urbano. Não surgem espontaneamente, e são sim fruto de um projeto social para estar inserido no mundo dos vivos.

Por isso, é preciso entender as circunstância em que os cemitérios foram se secularizando. O espaço destinado aos mortos era sempre um local de proximidade: eram colocados, por exemplo, nos terrenos em volta das casas, ou nos espaços considerados sagrados das igrejas e seu entorno. Isso propiciava a proximidade e alguma privacidade a estes corpos abandonados pela vida, ceifados por diferentes motivos. A secularização dos cemitérios levou estes corpos a compor um outro espaço só que desta feita coletivo. Os mortos seguem assim um destino comum reservado a todos e longe das casas e seus quintais que os abrigaram por toda vida. Neste local, o espaço da morte é definido e demarcado para estar nas bordas das cidades e a partir de uma concepção higienista de sociedade, onde a doença e a morte precisam ser isoladas e retiradas do convívio familiar. Experimentar a doença e morte deixa de ser um ato corriqueiro e familiar (algo que até então era usual e costumeiro) e começa a possuir espaços definidos para isolar, cuidar e quando não for mais possível, enterrar. A doença, a dor e a morte eram assim levadas para outros territórios. São territórios da morte.

Os túmulos de uma mulher católica e seu marido protestante, que não puderam ser enterrados juntos devido aos regulamentos do cemitério. Eles morreram na década de 1880.
Nota: as mãos segurando sobre a parede divisória. Localizada em Roermond, Holanda.
Por: Lindsey Fitzharris

Uma cidade aprisionada
A sociedade deste período (e falamos em algo a partir do século XVII e XVIII, com maior incidência a partir do século XIX) passa a ter diferentes instituições que procuravam isolar, controlar e disciplinar. É deste período que vemos o surgimentos de instituições como quartéis, conventos, escolas, manicômios, hospitais e porque não cemitérios?! A lógica para todos os casos é sempre a mesma: murar, cercar e facilitar a vigilância fornecendo espaços esquadrinhados, milimetricamente individualizados, entradas e saídas quase que exclusivas e horários rígidos para trânsito e permanência. A individualidade garantida é a do próprio corpo que ocupa celas, cadeiras, camas ou para nosso caso, o jazigo, a sepultura.

Para os cemitérios, a ordem de fechamento, que se mantém até os dias de hoje, revela a nítida separação entre o simbólico: Luz e Sombras, que remete ao perigo das almas que habitam o “mundo subterrâneo e escondido das profundezas”. Não devendo por isso, comunicar-se com o mundo dos vivos no período onde reinam as Trevas.

Esta cidade dos mortos a que nos referimos acima recebe dos vivos, em seus primeiros séculos, consideráveis investimentos: a morte e os sentimentos em relação a ela precisavam ser mostrados por meio de mausoléus ricos em detalhes, com muitos acessórios e peças vindas da Europa. Artistas, escultores e artífices da morte eram contratados para entalhar detalhes de vida e personalidade do morto em pedras, mármores, granitos. materiais que pela dureza e durabilidade remetiam à Eternidade, Permanência, Presença do Ausente.

À medida que a sociedade sofre a perda do poder aquisitivo, os túmulos deixam de ser locais de ostentação e a arquitetura tumular parece empobrecer. É o período de popularização de cruzes, sem a riqueza escatológica de períodos anteriores. A cor predominante continuava sendo o branco. Mas o investimento na morte se reduz enormemente.

Em períodos de maior opulência, como entre os anos 1900 e 1930 no Brasil, a morte passa a ser vista como um grande espetáculo e momento onde se pode mostrar a força e o poder.

Com isso toda uma produção artística atende esta população endinheirada e opulenta das cidades que se metropolizam. As cruzes passam a ser paulatinamente substituídas por crucifixos.
Tal como a cidade extra-muros, não há homogeneidade entre seus ocupantes. Riqueza e poder possuem elementos explícitos de ostentação. Daí a riqueza que estes elementos oferecem como território de análise para construções mentais, sociais e culturais. É um território de representações, sem dúvida! Mas tais construções iam além: os cemitérios podiam segregar não apenas por seu mobiliário e posição social. Desde o passado remoto, os mortos poderiam ser incluídos ou excluídos a partir de seus dotes ou preferências espirituais. Quanto mais considerados próximos da Divindade mais próximos poderiam ser enterrados dos templos e locais de adoração. Em tempos mais recentes os cemitérios criaram a segregação religiosa. E assim protestantes não podiam ser enterrados em cemitérios cristãos, suicidas não podiam ser enterrados em solo cristão, nem mulçumanos em cemitérios não-mulçumanos e assim sucessivamente. A morte e seus corpos carregavam o estigma espiritual de suas opções e escolhas feitas em vida. 

Ter em mente todos os elementos citados acima não significa esquecer-se de outras dimensões.
Passear por suas Alamedas propicia um silêncio e um contato com o tempo de histórias que já se foram, personagens petrificados em sorrisos de fotografias, em frases nas placas com datas, locais de nascimento, dedicatórias, epitáfios ou mesmo frases avulsas que sintetizam  pensamentos e ideias dos que foram ou dos que ficam. A comunicação entre vivos com seus mortos e dos mortos por meio de seus epitáfios são gravados em pedras e materiais de longa resistência como mármores, granitos. São assim um convite à permanência e resistência ao tempo e intempéries. Afinal ali estarão, imóveis… colocadas para resistir às muitas estações e gerações. Só farão sentido se assim forem e se assim conseguirem se manter frente à passagem do tempo por elas.

Estes escritos são, portanto, o registro do Tempo. São um mergulho de alma que nos remete a vidas que se passaram e relações que se entrelaçaram. Vínculos expostos publicamente num gesto final que pretende ser de resistência ao esquecimento.  Este território da morte perdido na cidade dos vivos é um território de transição: local de saudades de lembranças, abandonos, vidas que se deixam, vidas que permanecem.  Esta transitoriedade presente e calada nos faz pensar sobre permanência e imanência, e mostram a relação que seres humanos possuem entre si e com a sua representação de seus medos, suas inseguranças, esperanças e até fé.
Inevitável não pensar em alguns casos como o abandono chega e avança: delapidação, vandalismo, esquecimento, estão presentes em muitos destes locais.

Em outros lugares, ao contrário, somos levados a observar o cuidado com a lembrança personificada pela presença viva de flores e plantas. Afinal, estas servem para nos fazer lembrar que a vida possui seus ritmos, obedecem estações e estão em meio a esse tempo passado.

Os cemitérios, tanto como as cidades, envelhecem e até morrem. Deixam de ser territórios de lembrança, culto e devoção. Vencidos pelo tempo, muitos apenas deixam de existir. Outros, tal como muitas cidades ganham robustez com a passagem do tempo por meio dos personagens que ali tem seu destino final. Oferecem a todos o testemunho de um outro tempo e seguem sendo uma cidade de mortos no mundo dos vivos.
Paradoxal portanto, que este mergulho nesta cidade dos mortos, revela o quanto de vida pulsante existe em suas ruelas, quadras, muros e extra-muros. 

Os Mortos e o Luto em Tempos de Pandemia

Não poderia deixar de abordar o tratamento dado a morte e seus corpos em tempos de pandemia. 

A Pandemia de COVID19 trouxe ao mundo uma outra relação com todos os ritos relacionados aos mortos e seus parentes: desde os processos de isolamento no período crítico de internação, até sepultamentos sem velórios acompanhado por apenas uma ou duas pessoas. A experiência do luto deixa de ser restrito a um grupo familiar e ser compartilhado por cidades, países, continentes. A vivência da doença e morte é levada ao paciente como experiência solitária. A morte e sua materialização ocorrem em valas comuns ou sepulturas que se espalham pelos cemitérios aguardando caminhões frigoríficos e filas intermináveis de carros funerários. A morte ganha um status de linha de produção com excedentes de corpos insepultos.  Os corpos perdem o direito dos seus ritos: procedimentos de tanatopraxia (lavagem e preparo do corpo para o rito fúnebre) por exemplo, deixam de ser feitos. Os corpos possuem terão que passar por procedimentos de limpeza com produtos adequados, são embalados em plásticos com zíper e entregues para sepultamento em um caixão lacrado. Sem velórios, os corpos seguem para o sepultamento ou cremação acompanhados por no máximo quatro pessoas.
As despedidas comuns aos entes queridos deixam de ser possíveis, e em muito casos a pessoa que entra no hospital para isolamento nunca mais retornará. 

O Brasil, apesar de todo o negacionismo em relação às mortes, teve cemitérios lotados, covas rasas, retroescavadeiras, caminhões frigoríficos e até valas comuns! Tudo revelando a forma como a doença inesperada escancarou despreparos, desrespeitos e alguma negligência por parte de autoridades. Afinal, a cidade dos mortos pobres nas cidades dos vivos, significa invisibilidade constante. Os cemitérios apenas existem nas áreas periféricas para dar destino aos corpos que abandonam a vida por doenças e mortes violentas. Não cumprem uma função social de conforto, mas mais uma vez de exclusão e silêncio.  

Exemplar destas cenas são rapidamente localizadas, mas creio que dois cemitérios representaram muito bem o que foi a invasão de um inimigo oculto na vida das cidades. O cemitério de Manaus nos ofereceu cenas que serão icônicas do que significa improvisação e um estado acéfalo: valas comuns e retroescavadeiras.

Outro exemplo as imagens aérea do maior cemitério de São Paulo (Vila Formosa) com covas abertas antecipadamente aguardando seus mortos, que chegavam em filas de carros fúnebres. 
Sem ritos, túmulos ou cerimônias e despedidas, as cruzes brancas com números identificam os mortos em valas estreitas e rasas. Uma explosão demográfica na cidade dos mortos: crescimento desordenado, sem planejamento, vias de acesso ou quadras…

O espaço, que em uma configuração planejada seria de uma determinada dimensão tem as sepulturas delimitadas por madeiras para separar o espaço mínimo entre os corpos e sua urna. Tal a quantidade de corpos perfilados.  

O tempo ainda nos mostrará com maior amplitude as cicatrizes nos tecidos destes solos, sagrados para alguns, e suas consequências na forma de entender este processo de mortes coletivas e a lida com o luto. De concreto temos é um novo espaço criado pela pandemia nas áreas periféricas de todas as cidades: um espaço que não mais apresenta uma arquitetura tumular, mas simplesmente caminhos perfilados de caixões, justapostos lado-a-lado. 

A desigualdade se manterá entre ricos e pobres, já que para o caso dos endinheirados seus corpos serão depositados em seus mausoléus e túmulos de família. A escrita da pandemia nos cemitérios da cidade deixará seu desenho de exclusão e indiferença muito bem marcados. 
Não concluo, pois há uma pandemia em ação. Os corpos que deixa atrás de si contam trechos de muitas histórias. 

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Artigos relacionados:
Rezende, Eliana Almeida de Souza.  “Os historiadores e suas fontes em tempos de Web 2.0“. Publicado nos Cadernos do CEOM, ‘Documentos: da produção à historicidade”, Capa > v. 25, n. 36, Editora Argos, Chapecó, 20 (acessado em 01/11/2020)
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Ventres urbanos: cidades e sanitarismo“. Revista Ler História. Dossiê Guerras Civis, Lisboa. n. 51, 2006. pp 135-165 (acessado em 01/11/2020).
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade” (acessado em 01/11/2020)

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Museus: Faces e Fases de uma Metrópole

Por: Eliana Rezende

Como poderíamos, por meio de determinados ícones de arquitetura e cultura, entender uma metrópole?

Experimente fazer isso com alguns deles.
Comecemos por dois. Com acervos e localização à parte, os prédios da Pinacoteca do Estado de São Paulo e o MASP (Museu de Arte de São Paulo) podem nos trazer pistas interessantes sobre a metrópole e suas faces. Contam-nos boas histórias de um outro tempo e da criatividade e determinação de seus arquitetos e idealizadores.

Um é representante de uma arquitetura tradicional de princípios do século XX, com projeto do escritório de Ramos de Azevedo (1896-1900) e que no decurso do tempo sofreu diversas reformas e intervenções. A última delas ocorrida na década de 1990, durante a gestão de Emanoel Araújo como diretor da instituição. E de um projeto de recuperação do prédio assinado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

O outro é representante de uma arquitetura moderna.
Em 1958, a arquiteta Lina Bo Bardi projeta o edifício da avenida Paulista, atual sede do museu. Foi inaugurado em 1968 com a presença da rainha Elizabeth II da Inglaterra, logo após a morte de seu fundador, Assis Chateaubriand (1892-1968).

Pensar estes dois prédios é de fato pensar de que forma o cosmopolitismo de São Paulo perpassa bairros, épocas e composições. Olhar o vão livre do MASP é espreitar sob um janela de 74 metros estendida sobre o asfalto e de alguma maneira tomada pelos paulistanos e por suas construções em concreto à sua volta. Tem uma linguagem que, para mim que sou leiga, é limpa, linear, moderna, sem excessos ou rebuscados.

A Pinacoteca é fruto de um prédio que pareceu, no decurso do tempo, ser fruto de uma constante reforma, e que por empenho de muitos, com um acervo impecável e uma programação irrepreensível, tornou-se uma referência do coração da cidade. Plantada numa área histórica, se impõe como um edifício que salta aos olhos e que para nós paulistanos, dá uma sensação de nos sentir em casa. Carrega em si todas as nossas contradições urbanóides. A sensação de luminosidade e espaço em seu interior contrastam com uma cidade sufocada por trânsito, congestionamentos de carros e de almas que tem em suas bordas toda a marginalidade e decadência do craque, da prostituição.

De fato, duas pauliceias: prazer estético e contradições para todos os que por elas passam.

MASP2

O vão livre do MASP a cada dia parece menor em vão e mais ocupado em gentes. Espaço de constantes manifestações e ocupações, é palco de vida pulsante.

Para além disto, o MASP parece ser o signo de toda a nossa contradição: um esforço de ser moderno, viver com suas dificuldades, usos e abusos heterogêneos de espaços, riqueza cultural e patrimonial, em meio a um poder público omisso e ausente. Sua riqueza de acervo contrasta com problemas estruturais de múltiplas gestões e muitas ausências de políticas culturais e financeiras. De fato, temos no MASP a expressão de tudo junto: essa Pauliceia sôfrega por tantos problemas, ritmos e possibilidades.

A Pinacoteca e todo seu conjunto arquitetônico, em torno da Luz, tem uma vitalidade histórica contrastante com tantos problemas sociais e de ocupação à sua volta. Mas é uma ilha de prazer estético e entrar dentro dela parece nos levar para outro tempo… outra sensação. É um ponto de oxigenação para mentes e meio de encontrar diálogos para formas e estéticas.

Icônicos em composição, ocupação, funções e atribuições revelam as muitas contradições que só uma megalópole como São Paulo tem.

Mas as faces e as fases de Sampa não são apenas estas.
Podem estar no caleidoscópio de outros ícones que se espalham pela cidade e que dão conta de outros trechos de longas histórias.

Um terceiro exemplo é o Museu Paulista, mais conhecido como o Museu do Ipiranga.
O arquiteto e engenheiro italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi foi contratado em 1884 para realizar o projeto de um monumento-edifício. O estilo arquitetônico, eclético, foi baseado no de um palácio renascentista, muito rico em ornamentos e decorações.

Seu acervo riquíssimo dá ao seu conjunto arquitetônico ainda mais interessência e prazer estético. Escadarias internas e externas, colunas e tetos adornados, ladeado por belos jardins planejados e inspiradores. O primeiro projeto paisagístico, por exemplo, é de 1909 do belga Arsênio Puttemans. Nos anos 1920 o jardim foi remodelado, desta vez pelo alemão Reinaldo Dierberger. Leia mais aqui, sobre a importância de tais projetos paisagísticos na construção da identidade nacional e suas relações com os espaços urbanos.

É de fato um museu que se derrama por seu entorno e que acolhe todos os que fazem de seus jardins uma extensão de suas próprias casas. Permite por meio de suas calçadas e jardins uma comunicação interessante entre os espaços de dentro e de fora. Democrático nos seus sentidos de uso, via a diversidade de utilizadores encontrar-se todos os dias com pesquisadores em busca de seu acervo documental e rica biblioteca.

Sem dúvida, está entre o mais querido e lembrado por todos os que visitam ou moram na cidade.
Mas também é outro museu que vive de contradições tal como os citados acima. Infelizmente para todos nós, foi o que teve o mais trágico destino dos últimos tempos.
Teve suas portas fechadas às pressas e só tem previsão de reabertura em 2022, para salvaguardar conjunto arquitetônico, bem como suas obras e acervo.

Mas, e quando a arte deixa as edificações e as paredes que as circunscrevem e toma a rua num nítido transbordamento de muros?

beco-do-batman

São Paulo também conhece muito bem esse fenômeno. A Vila Madalena corporifica esse transbordamento por becos e ruelas. O grafitti ganha os muros e revela um museu a céu aberto. As fronteiras tão marcadas por projetos desenhados, que guardam obras e expressões artísticas intramuros se dissipa: o muro e a rua passam a ser molduras para seus artistas e sua comunicação com e pela cidade.

A cultura neste sentido, deixa suas marcas na malha urbana e dialoga com os espaços desta. O grafitti se espalha pelos muros do bairro usando a cidade como seu suporte principal. Técnicas, temas e artistas se revezam nos olhares de transeuntes-consumidores. Uma via de comunicação entre os que vão e os que vêm.

No bairro, uma viela se tornou um ponto turístico na região, é a rua Gonçalo Afonso, chamada de Beco do Batman que é totalmente grafitada, onde não se encontra praticamente um espaço para mais desenhos, por isso, periodicamente os trabalhos são substituídos.

Conheça um pouco mais do Beco do Batman na Vila Madalena, através da reportagem “Outras Coisas”, Do programa da TV Uniesp sobre o roteiro cultural do bairro:

Movimento-Beco do Batman

De tudo o que vimos tem-se que a cidade e seus museus são espaços de apropriação multicultural. Por meio destas apropriações, tais sujeitos fornecem uma nova cartografia que se impõe aos diferentes espaços aqui analisados. Representam também formas que se alteram pelo tempo e espaço, não apenas edificado, mas social e cultural.

É só prestarmos atenção como a arquitetura eclética e de paisagismo construído com vistas à criação de uma identidade nacional presente no edifício do Museu Paulista, ganha um novo contorno na proposta do prédio da Pinacoteca do Estado, que é tradicional, como o são toda a concepção de cidade que cresce ao seu entorno. Uma cidade que ainda busca em matrizes europeias, formas, gostos e ornatos.

Num nítido processo de busca de despojar-se de todo esse passado, o projeto arquitetônico do MASP traz uma nova dimensão de linhas e traços. Abandona os rebuscados. Busca nas linhas retas e de material moderno sua edificação. Plantado em meio a casarões de barões de café, para começar a comunicar-se com seu entorno: acolhe e é acolhido por outros elementos de construção à sua volta. Ergue-se e constitui-se um marco de uma metrópole contemporânea, assumindo formas que dão-lhe mais usos e funções.
É concreto e cor sobre asfalto e gentes.

beco-do-batman2

E só a partir daí que a maturidade urbana permite o encontro da arte com os muros de ruas, becos, ruelas. A Pauliceia encontra formas de expressão não apenas circunscrita por paredes e projetos, mas pelas ruas desenhadas por habitantes e ocupações: sem projetos ou linhas. A arte libertou-se de todas as amarras e encontra expressão por tintas, pinceis e spray, molduradas por blocos simples de cerâmica ou concreto.
A Vila Madalena materializa esse escape cultural.

Daí tantas faces e fases. Escolha a sua!
 

Como podemos ajudar?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria, conhecimentos testados e experiência prática para o desenvolvimento e aplicação de princípios para a Projetos de Preservação e Conservação de Patrimônio Documental e Fotográfico em instituições de diferentes segmentos e suas áreas de atuação. Além de podermos orientar boas práticas em relação à produção documental em diferentes suportes com principal atenção à práticas de conservação preventiva com o objetivo de evitar consequências de processos de deterioração. Além de podermos orientar boas práticas em relação à produção documental em diferentes suportes com principal atenção à práticas de conservação preventiva com o objetivo de evitar consequências de processos de deterioração.
Ao realizar isso, cuidamos da Memória Institucional garantindo que a cultura e a identidade organizacional se solidifiquem, ao mesmo tempo em que auxiliamos nas formas como a informação possa estar acessível, organizada e em locais próprios como Centros de Documentação e/ou Memória.

Veja nosso Portfólio de Cases e o que nossos clientes tem a dizer.
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* Artigo publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
 
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Patrimônio Cultural e Responsabilidade Histórica: uma questão de cidadania

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Ainda vivemos o rescaldo de uma das maiores tragédias culturais que nosso país assistiu bestializado: 200 anos de pesquisa e trabalho científico viraram cinzas sob os olhos televidentes do Brasil e do mundo. Era domingo, perto das 19 horas no primeiro dia da “Semana da Pátria”.
Ironias à parte, eram um dia e horários nobres para que assistíssemos o inominável desfecho de séculos de desprezo ao Patrimônio que é de todos. Nosso Patrimônio Cultural/Documental foi consumido pelo descaso, por cupins e chamas!
Naquele momento faltavam palavras… sobravam dor e estupor.

O regresso civilizacional que demonstramos e nossa impotência de ser fiel guardador de um Patrimônio único e precioso que não é de um Museu, mas da Humanidade. Sim, Humanidade! Pois, Patrimônios Culturais pertencem à toda a civilização humana: é Responsabilidade Histórica que devemos à nossa geração e às futuras.

Mas afinal, que povo, que sociedade somos nós?
Pergunto, pois o momento atual não é o de sair à caça de bruxas e bodes expiatórios, sem qualquer crítica reflexiva. Fazer isso nada mais será do que escancarar, apenas e tão somente, espasmos de um discurso raso e oportunista.

Buscam-se “culpados” e “responsabilidades”, mas sem uma verdadeira e profunda preocupação. Em verdade, venhamos e convenhamos: o descaso e desrespeito ao Patrimônio Cultural e Histórico no nosso país foi construído e exercido há séculos, e por todas as camadas e segmentos da sociedade. Não ocorrem do dia para noite. Em alguns casos é fruto de séculos.

É exemplo disso, o relatório de 1844 que o então Diretor do Museu Nacional, Frei Custódio Alves Serrão, responsável pela instituição entre os anos de 1828 e 1847, apresentava sobre as condições precárias do Museu, então com 26 anos de vida.
Em suas palavras: “A Seção de numismática e artes liberais, arqueologia, usos e costumes das nações antigas e modernas acha-se em uma sala cujo teto ameaça ruína, visto as grandes fendas do estuque que continuamente se alargam“.
Diferentes relatórios se sucederam e as dificuldades não cessaram.
A maior prova deste fato foi o ocorrido no fatídico 02 de Setembro de 2018.

Pensemos sobre a sociedade que temos e que conseguimos produzir nestes nossos poucos séculos de existência. Será mesmo que como conjunto, podemos ser considerados um povo que exerce sua cidadania zelando e cuidando do que seja seu Patrimônio Cultural? Quantos de nós, individualmente ou como instituição, cumprimos o papel cidadão de responsabilidade histórica para com as futuras gerações?

Um breve olhar nos faz ver que nossa sociedade saiu direto do analfabetismo funcional para as redes sociais, sem escala, crivo ou pensamento crítico. Consome-se diversão através de grandes telas pixeladas e dificilmente, estes mesmos consumidores estiveram de fato dentro de um museu consumindo a cultura que necessitou de séculos para ser produzida.

Pergunte a quem está ao seu lado, quantos livros ou artigos leu no último mês, e quantos vídeos compartilhou no YouTube. Os analfabetos funcionais na nossa sociedade podem não ler, nem compreender um único parágrafo, mas não se descolam de seus Smartphones, e a quantidade de compartilhamento e likes movimentados em um único dia, indicam que absolutamente nada é lido, nem pensado. Uma sociedade espasmódica e plana, que não sabe o nome dos museus de sua cidade, as exposições que abrigam e com quem dialogam. Mas que distribui como ninguém correntes de Whatsapp e fotos fazendo biquinhos no Instagram e Facebook.

Descaso, cupins e chamas…
O que me aflige, é que o tempo passará, e em breve até os poucos indignados se calarão, pois não terão mais ouvidos para além das imagens sensacionalistas produzidas em um dia de intensas reportagens televisivas voltadas única e exclusivamente para garantir consumo de imagens e dar aos cofres das empresas de mídia anunciantes ávidos por consumidores voláteis.

Em pouco tempo a revolta estará calada, e voltaremos a ver patrimônios serem pichados, sujados, vandalizados, roubados, destruídos. Quer por inciativas individuais, quer por iniciativa das Administrações Públicas e Privadas, que estarão cada vez mais negando ou tirando recursos para “investir” em outras áreas.

Ou será que já esquecemos do que ocorreu com Museu da Língua Portuguesa, ou o Instituto Butantã com um acervo biológico incomensurável?
Ou o incêndio, que em 2005, destruiu, em Franco da Rocha, o Arquivo Histórico do Hospital Psiquiátrico do Juqueri? Boa parte dos registros da história da nossa psiquiatria virou cinzas.

Ou as águas do temporal de 2 de janeiro de 1990, que invadiram a Biblioteca de Filosofia e Ciências Sociais da USP atingindo em cheio os livros colecionados a duras penas desde a chegada da Missão Francesa que fundou a USP?
Ou a enchente do Rio Pinheiros nos meados dos anos 1980, na Vila Leopoldina, que inundou o pavilhão do Tribunal de Justiça de São Paulo onde era abrigado um acervo de 200 anos do Arquivo do Judiciário? Mais de um metro de água suja cobriu muitas centenas de processos, entre eles os 180 volumes do processo da Revolução de 1924. Um dos volumes era exclusivamente de fotografias, um documento visual da tragédia ocorrida em São Paulo naquele ano. Aquele arquivo era fundamental para o estudo de questões sociais, referência de teses acadêmicas sobre temas fundamentais de nossa história social, como criminalidade e anomia social.

Ou quem sabe o incêndio que consumiu o Museu de História Natural da UFMG, que abrigava segundo a instituição 265.664 itens entre peças e espécimes científicos preservados e vivos, em diferentes áreas de Conhecimento, como: Arqueologia, Paleontologia, Geologia, Botânica, Zoologia, Cartografia Histórica, Etnografia, Arte Popular e grande quantidade de Documentação Bibliográfica e Arquivística. O espaço ainda contava com um auditório, viveiro de mudas, uma lagoa, um anfiteatro ecológico e um jardim sensorial.

Ou seja, estamos conseguindo nos jogar nas trevas da ignorância e do alheamento para com a produção de diferentes saberes. Será mesmo isso o que queremos como Nação, como Sociedade e como Comunidade Científica e Acadêmica?

O Culto à Ignorância
Arquivos, Bibliotecas e Centros de Documentação significam para a humanidade verdadeiros templos: fiéis guardadores do saber e da construção do Conhecimento através dos Tempos e das Eras. Sem eles perdemos nossa Identidade. Perdemos o sentido do: de onde viemos e para onde vamos. São nestes espaços que a pesquisa e a investigação se adensam, fortificam-se e geram saberes perpetuando-se para futuras gerações. Desprezar isso é a barbárie social e cultural de toda uma civilização.
Uso as palavras textuais do professor José de Souza Martins:
Subestimar, depreciar e abandonar os acervos que registram, preservam e acumulam o saber vivo de muitas gerações mortas de pesquisadores e cientistas é renunciar à ciência. Descuidar dos acervos de arquivos, museus e bibliotecas é a morte do próprio conhecimento“.

É preciso que abandonemos o culto à ignorância e ao desrespeito ao passado. E infelizmente nosso país tem sido zeloso neste culto. De alto abaixo: de secundaristas à gestores de multinacionais – o culto à ignorância e à reverência ao deus mercado e ao imediatismo tolo tem sido a regra. Vive-se o hoje pelo hoje e se esquecem de quem não tem passado não possui lastro para construir presente nem futuro.

Assisto atônita como profissional da informação e lidando com Memória Institucional, um descaso descomunal com o que é considerado apenas “gasto”. Gestores, ditos “profissionais”, possuem uma visão que não alcança um palmo e se esquecem de que sua gestão passará, mas a História do que formos e fizermos, para o bem ou para o mal permanecerá. As vantagens e cifras obtidas em negar o que é devido à História, cobrará uma fatura altíssima no futuro. O gestor que não consiga ter vistas ao futuro não praticará a gestão, e sim ingerência.

O descaso que presenciamos pode ser de amplas proporções com labaredas imensas, consumindo trabalhos de séculos em horas. Ou pode ser no descaso praticado diuturnamente com as más condições de vida e trabalho oferecidas à profissionais e seus acervos. Pode ser nas goteiras que não abandonam telhados, fissuras e rachaduras que insistem em trincar paredes, nos armários ou materiais para acondicionamento que nunca chegam, nas tecnologias que já chegam ultrapassadas. Pode ser na mão-de-obra que nunca é contratada ou no recurso que é sempre esparso e insuficiente. Pode ser na perda de capital intelectual por meio de políticas de juniorização das instituições, quando experientes profissionais simplesmente são encostados ou demitidos para dar lugar a jovens ambiciosos mas sem qualquer experiência. Não importa! O fim último é sempre o mesmo: perda de Patrimônios e subtração de nossa História, com impactos profundos sobre funcionários ainda zelosos e a Memória Social de diferentes gerações.

Os documentos (entendidos aqui como todos os registros da atividade humana) em diferentes suportes, são verdadeiros sobreviventes. São sobreviventes de descasos múltiplos, mutilações, abandonos, desprezos, ataques de forças da natureza (enchentes, vendavais, insetos, terremotos, incêndios), ou talvez o mais nefasto deles: o ataque dos humanos (vandalismo, roubo, depredação, desprezo, abandono, ingerências de várias ordens e instâncias). No capítulo ingerências poderia escrever um tratado escrito em frente e verso sobre as diferentes formas que gestores, que em teoria deveriam zelar por seus patrimônios, tornam-se por ignorância ou determinação, algozes do passado e do futuro: imprimem ao presente e às suas gestões a determinação da destruição. Acreditam ser perenes. Quando em verdade passarão, mas os estragos causados permanecerão como testemunhas silenciosas de sua passagem, suas práticas, feitos, desfeitos  e omissões.

Por outro lado há os que acham, de novo, que Patrimônios se reconstroem! Acham que basta destinar alguma verba e tudo estará “reconstruído”. Uma palavra de cautela aqui: em primeiro lugar não há “reconstrução” para o que é imaterial! E não há reconstrução para Patrimônios da Humanidade, há sim, esforços de “restauração”. Mas esta está condicionada há muitos fatores e possivelmente, não poderá ser efetuada em sua integridade.

No caso do Museu Nacional, se em alguns casos a pedra e o cal podem ser “restaurados”, há coleções construídas no decorrer de 200 anos de pesquisa e trabalho científico que não poderão. São trabalhos feitos à mão por centenas de pesquisadores e existências inteiras dedicadas à pesquisa e produção de conhecimento. O Conhecimento é construído e tessido a partir do acúmulo e do diálogo estabelecido com seu predecessor.
Por isso, o trabalho de produção de Conhecimento a partir de estudo e pesquisa é algo que não está em uma prateleira para ser buscado e recolocado em seu lugar. Não há peças de reposição! Diferentes pesquisadores já morreram há décadas e com eles seus saberes que estavam cristalizados no conjunto de suas coleções e estudos.
E aqui é preciso compreender a forma específica que um Museu se constitui. Em nada se parecem com valores, cifras e acúmulos bem conhecidos dos cultuadores do “deus mercado”. Há coisas que definitivamente o dinheiro não compra!

O que importa, é que o acontecido no Museu Nacional do Rio de Janeiro serviu para colocar em debate aspectos relacionados à preservação e conservação de documentos e coleções imbuídas de valor histórico.

Conservação Preventiva como Políticas de Preservação de Patrimônios
Antes de pensarmos em restaurar, precisamos ter o sentido do que são ações e Políticas de Preservação que devem nortear instituições com acervos tão ricos e especiais. A noção de preservar tem que ver com uma atitude de prevenção, é algo que se estende a modos que impliquem uma conscientização que pode ser de um grupo, uma pessoa ou uma instituição.

Como forma de auxiliar nesta definição, apresento de forma sintética como todos estes termos polissêmicos podem ser entendidos.

[slideshare id=35231408&doc=definindoeconceituandopreservao-conservaofinal-140528150836-phpapp01]

O mais importante em ações que envolvem políticas de preservação e conservação são sua manutenção no tempo. Para isso definições de prioridades e estratégias de como utilizar recursos são fundamentais. E aqui entra um aspecto fundamental: a prevenção não ocorre com grandes montantes de vez em nunca, mas em ações contínuas. Precisam ser entendidas como políticas de preservação e conservação preventiva, que precisam ter ser espaço garantido no decurso do tempo.

Vamos compreender alguns equívocos recorrentes:
Em muitos casos, argumenta-se que é preciso utilizar diferentes processos tecnológicos para “salvar” tais documentos. Mas é preciso que se diga que coleções formadas e guardadas em Museus possuem uma característica para além do que é oferecido por documentos bidimensionais: a digitalização ou microfilmagem torna-se inviável já que tais documentos são objetos tridimensionais, dotados de características muito específicas e únicas, e denominados por isso, de Cultura Material. A principal característica deste tipo de registro pauta-se sobre sua existência material, única e carregada de sentidos tanto quanto de forma e conteúdo.

Não há reflexão possível ou provável a partir da sua ausência ou falta. A imaginação serve pouco, pois carece de análise que só os indícios podem trazer.

O que teremos neste caso, seria uma redução das potencialidades de uma documentação nascida a partir da experiência tridimensional (cor, textura, peso, etc) para sua redução à bidimensionalidade de uma imagem escaneada. Não há aqui crítica pela crítica, mas sim uma característica indissociável do que seja o objeto tridimensional e o bidimensional. A digitalização aplicada a este conceito reduziria possibilidades de pesquisa e investigação próprios e caros à Cultura Material.

Processos de digitalização podem e devem ser introduzidos em Políticas de Preservação e Conservação de Patrimônios, mas nunca como uma medida pós tragédias. Convém que sejam pensadas e implementadas como estratégias de conservação preventiva. Para entender melhor este tema, sugiro a leitura de um artigo que escrevi intitulado “Uso de tecnologias como política de preservação e conservação de patrimônio cultural/documental“.

Uma nota de atenção
Há ainda os ditos liberais de plantão que acreditam que empresas privadas dariam melhor conta dos desafios administrativos de um Museu. Mas aí entramos em outras questões: um Museu está relacionado à Cultura e Identidade Nacionais. Não podem ter lastro com intenções e oscilações do deus mercado. Se iniciativas privadas possuem um interesse grande pela imediaticidade de retornos, custos e cifras seria muito complicado para uma instituição que tem sua responsabilidade marcada pelo seu compromisso com o tempo e longe de vínculos com o Mercado.
Se tais instituições privadas querem o bem dos Museus podem sim auxiliar fornecendo possibilidades financeiras e de boas práticas gerenciais, mas com um sentido colaborativo e não como responsáveis diretos e únicos.

Patrimônios da Humanidade pertencem ao conjunto de toda a sociedade e precisam ser tratados como bem de todos, e portanto, devendo ser garantidos através do tempo para a posteridade. Não podem estar regulados por interesses de mercado onde cifras, metas e bilheterias servem de métricas.
O papel de inciativas privadas é dotar tais instituições de condições para se perpetuarem no tempo e garantir que seus acervos fiquem guardados em segurança cumprindo seu papel histórico e social. Ao fazer isso, as empresas envolvidas estarão cumprindo seu papel de Responsabilidade Histórica para com a sociedade presente e futura.

Adendo pós-incêndio na Cinemateca Brasileira:
Um roteiro de como se destruir a Memória de um país

Tal como temia, após o incêndio do Museu Nacional outras grandes tragédias o sucederam. Em 29 de Julho de 2021, o fogo encontrou a Cinemateca Brasileira. Era mais elemento de destruição somado ao abandono em que a instituição se encontrava. Até o Ministério Público Federal chegou a processar a União por abandono do acervo em julho de 2020.
A trágica histórica da Cinemateca Brasileira encontrou seu pior enredo em 2019 quando o governo federal anunciou que não iria renovar o contrato com a organização que tomava conta da Cinemateca. Mesmo sem receber seus salários, parte da equipe que lá estava continuou trabalhando por amor ao acervo e medo que este fosse completamente destruído pelo abandono e descaso. Mas infelizmente em agosto de 2021, o secretário especial da Cultura, Mario Frias, exigiu que todos saíssem e as chaves fossem entregues. E assim aconteceu.

O restante da tragédia todos sabemos:
Filmes antigos com base de nitrato de celulose, necessitam de trabalhos de preservação e conservação como forma de prevenir incêndios e outras formas de deterioração. Sem elas o roteiro de destruição de consumaria mais dia menos dia, tal como ocorreu em diferentes ocasiões.

A Cinemateca Brasileira (criada por intelectuais amantes e estudiosos de cinema) sofreu diferentes incêndios no decurso de sua história:

1957: A Cinemateca havia se separado do MAM para obter independência jurídica e administrativa e conseguir apoio financeiro público. Finalmente havia se tornado a Cinemateca Brasileira (antes, era a Filmoteca, um departamento de cinema dentro do MAM).
“Ali, estavam guardadas películas dos primórdios do cinema nacional, documentários da vida do país” dos últimos 30 anos, diz o texto, “entre fitas do interior e películas alemãs, francesas, inglesas, russas e norte-americanas”.
1969: Um novo incêndio, desta vez em prédio dentro do Parque do Ibirapuera consumiu cerca de 300 filmes.
1982: Desta vez 1,5 mil filmes foram perdidos por um novo incêndio.
2016: Neste incêndio, foram mais de mil rolos de filmes perdidos. Segundo o site da instituição, o fogo destruiu 731 dos 44 mil títulos guardados na Cinemateca.
2021: Ainda não se sabe qual parte do acervo se perdeu neste quinto incêndio. Um manifesto divulgado por ex-funcionários da instituição lista itens do acervo que estava armazenado na Vila Leopoldina e que pode ter sido perdido ou afetado pelo incêndio. Itens como todo o acervo documental das polícias do audiovisual brasileiros, como o Arquivo Embrafilme. Também havia ali parte do acervo de documentos do arquivo Tempo Glauber, “inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição”, diz o manifesto.

O manifesto dos trabalhadores da Cinemateca classifica o incêndio de quinta (29/7/21) como um “crime anunciado, que culminou na perda irreparável de inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro”.

Entrevista concedida ao Jornal El País e publicada em 10.08.2021 em versão espanhola para público internacional.

É evidente que não bastam indignação, dor, revolta. Estamos diante de um projeto de destruição da cultura em nosso país. E este vem sendo vencedor…infelizmente!

É fundamental que intelectuais e profissionais de diferentes áreas e setores se unam e encontrem formas, atitudes e ações que de fato alternem este estado de coisas.

Cada um a sua maneira deve buscar forma colaborativas e criativas de ajudar a salvar acervos, história e memória. Da minha parte sigo colaborando como sei.

Como a ER Consultoria pode ajudá-lo?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria para utilizar as informações contidas nos documentos em diferentes tipos de acervos e/ou arquivos para Projetos de Memória Institucional com vistas ao fortalecimento de Identidade e Cultura Organizacional em empresas de diferentes segmentos e suas áreas de atuação. Além de ofereceremos metodologias e técnicas adequadas para a Preservação e Conservação de Acervos e seus suportes físicos ou digitais.

Se você possui dúvidas sobre como tratar seus diferentes patrimônios entre em contato e encontraremos uma forma de auxiliá-lo quer por uma Assessoria Técnica Especializada ou por meio de Capacitações Técnicas ao seu corpo de profissionais.

Conheça nosso Portfólio de Cases e o que nossos clientes tem a dizer

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* Versão atualizada a partir do incêndio na Catedral de Notre Dame acontecido em 14/04/2019 e com o incêndio do Museu de História Natural da UFMG, ocorrido em 15/06/2020 e do incêndio na Cinemateca Brasileira em 29/07/2021.

Referências:
Artigo Morte da Memória Científica de José de Souza Martins, escrito em 2010 no Estadão.
A Construção do Conceito de Patrimônio Histórico: Reconstrução e Cartas Patrimoniais Reportagem  BBC – NEWS/Brasil

* Posts relacionados:
Porque Documento Digitalizado não é Documento Digital
Uso de tecnologias como Política de Preservação de Patrimônio Cultural
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Memórias Digitais em busca da Eternidade
Juniorização e perda de Capital Intelectual nas Organizações

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Uso de tecnologias como Política de Preservação de Patrimônio Cultural

Por: Eliana Rezende

Em outro post esclareci o que a Gestão Documental pode representar para as instituições do ponto de vista de racionalidade e transparência administrativa.

Nesta oportunidade, vou tratar do valor de políticas de preservação de patrimônio cultural-documental  de acervos históricos dentro das instituições e de que forma são importantes como meio de garantir que informações contidas em documentos de diferentes suportes tenham asseguradas sua permanência através do tempo, para beneficio da produção de conhecimento, pesquisa, cultura e inovação.

Com esta responsabilidade e preocupação, é que as diferentes tecnologias disponíveis no mercado, têm se transformado em coadjuvantes num trabalho que possui duas frentes: de um lado, a disponibilização de informação de qualidade em tempo reduzido, ao mesmo tempo em que, possibilita que políticas de preservação e conservação se efetivem.

A noção de patrimônio é interessante quando pensamos a massa documental existente no interior das instituições.
O conceito de patrimônio vem se alargando contemporaneamente e neste sentido pode tomar, não apenas, a produção humana (obras de engenharia, monumentos, tecnologias, etc) , mas toda a produção emocional e intelectual das sociedades (música, poesia, acarajé, entre outros). Assim, o patrimônio é um bem cultural que permite que possamos conhecer melhor a sociedade e o mundo que a cerca, desde que estes sejam capazes de vencer o tempo.

Como forma de auxiliar nesta definição, apresento de forma sintética como todos estes termos polissêmicos podem ser entendidos.
Confira:

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E é exatamente este o desafio que se coloca aos profissionais que atuam com documentos que necessitam ter uma guarda de longa duração.
Como atuar de forma eficiente e eficaz realizando todo o trabalho de manutenção de acervos com políticas de preservação e conservação de documentos, ao mesmo tempo em que se garante o acesso às informações que tais registros contém?
Como garantir que a informação seja preservada em quaisquer que sejam os seus suportes, e que as mesmas sejam utilizadas como meios para a criação de inovação e conhecimento?

PA170003Ministrando Oficina de Preservação e Conservação Fotográfica

Indubitavelmente, o que se coloca como prioritário nesta sociedade é quais serão os critérios para definir que informações têm relevância suficiente para justificar seu alçamento à posteridade através de investimentos em recursos humanos, tecnológicos e financeiros para sua manutenção.

O que fica de todo o exposto acima é que a noção essencial a ser explicitada é a de preservação e conservação de documentos.
Sinteticamente e de forma didática,  poderíamos definir cada uma delas da seguinte forma:

Preservação = ações de prevenção da deterioração e que tem como principal objetivo o de proteger e salvaguardar o Patrimônio. É composta por técnicas preventivas que envolvem o manuseio, acondicionamento, transporte, exposição e o controle ambiental.

Conservação = caracteriza-se pelo conjunto de intervenções diretas, realizadas na própria estrutura física do bem cultural, com a finalidade de tratamento, impedindo, retardando ou inibindo a ação nefasta ocasionada pela ausência de uma preservação. É composta por tratamentos curativos, mecânicos e/ou químicos, tais como: higienização ou desinfestação de insetos ou micro-organismos, seguidos ou não de pequenos reparos

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Oficina de Preservação, Conservação e Restauro de Documentos

As duas ações, se realizadas enquanto políticas, garantem a integridade e manutenção do patrimônio existente no interior de instituições e, em nosso caso específico, os acervos documentais em seus diferentes suportes.
Com este caráter são também chamadas de ações de conservação preventiva, cujo objetivo principal é não permitir que os documentos tenham que sofrer processos de restauração, que representam maiores custos e demandas especializadas.

Além destas preocupações, a importância de ações contínuas e coerentes coloca-se como condição fundamental. Não adiantaria criar inúmeras ações sem garantias que possam ter continuidade, ou mesmo que se consumam recursos em demasia em uma direção, esquecendo-se completamente de outras (não adiantaria embalagens de boa qualidade quando o local em que os materiais estão guardados é inadequado).

Daí a necessidade de definir prioridades e planejar o futuro: estabelecendo programas e projetos que se desdobrem e que possuam como principal objetivo a permanência, ao mesmo tempo em que a preservação e conservação estejam garantidas.

Preservação e conservação de fotografia

Oficina de Preservação, Conservação e Restauração de Documentos

Este trabalho só é bem sucedido quando se conhece de perto as necessidades e demandas internas e externas dos usuários, e possui um trabalho minucioso, pautado em um cronograma realizável .

Um cronograma de trabalho aplicado às reais necessidades dos usuários viabiliza passos e aponta caminhos a serem seguidos com metas claras e objetivas. Não se perde tempo com aquilo que não importa ao mesmo tempo em que se enxergam rapidamente áreas de gargalos e realizações.

De tudo o que se disse, têm-se que a disponibilização de acervos via informatização vem sendo um trabalho árduo, com inúmeras reflexões sobre a aplicabilidade de tecnologias aos acervos históricos em geral e o cumprimento de requisitos mínimos de preservação e conservação digital.
Não será somente a tecnologia a fazer isso!

A discussão sobre este e outros temas relacionados, segue em outras postagens.

Enquanto isso, conheça a solução especialmente desenvolvida pela ER Consultoria | Gestão de Informação e Memória Institucional para implantação de Projetos de Preservação e Conservação de Documentos e Fotografias.

Veja nosso Portfólio de Cases e o que nossos clientes tem a dizer.

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1ª versão deste post publicada originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta.

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