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Importância do Rigor Metodológico e Conceitual em Memória Institucional

Por: Eliana Rezende Bethancourt 

À guisa de uma introdução:

A escrita coloca a quem escreve, o desafio de ponderar palavras e elaborar conexões de sentido. Diante disso, um esclarecimento: minha fala pauta-se a partir da observação que venho fazendo em relação ao oferecimento de cursos e outras formas de capacitação e/ou consultorias que tem proliferado nas redes, até propiciada pelos recursos online aos quais temos acesso. 

Uma tempestade perfeita se formou onde de um lado, temos a tecnologia acessível, e de outro pessoas disponíveis com tempo ou recursos, querendo realizar cursos e aperfeiçoamentos, ou demandas que necessitam de uma consultoria ou assessoria técnica. Engana-se aquele que acredita que, por ser uma capacitação ou consultoria, esta deva ser desprovida de rigor, e que qualquer coisa poderia ser aceita, já que são poucas horas destinadas a ela.

Os pilares que sustentam, e que firmam toda uma carreira, assentam-se obrigatoriamente na formação teórica, acadêmica e no rigor metodológico. São pilares que prezo e persigo tanto em mim, quanto no meu trabalho, meus alunos e nos profissionais que me cercam, ou nos clientes que me procuram.

Em geral, e até por uma demanda que chamamos de coerência, este rigor Conceitual e Metodológico devem ser acompanhado por ações profissionais que os sustentem. A seriedade imposta deve ser ainda mais rigorosa quando nos dispomos a ensinar ou a desenvolver um trabalho que repercutirá numa comunidade ou organização (seja ela qual for). A docência e o profissionalismo em áreas de conhecimento técnico é um compromisso público e ético com a área em que atuamos e com aqueles com quem compartilhamos nossos conhecimentos ou experiências.

Colocando uma lupa

Como é óbvio, não é possível cobrir todas as formas de capacitações ou consultorias e assessorias técnicas em diferentes áreas. Portanto, me aterei a minha área específica de atuação acadêmica e profissional que é a Gestão de Informação e a Memória Institucional. Leitores de outras áreas podem tirar proveito do que escrevi pensando em conexões com suas áreas especificas de formação e/ou atuação.
Meu debate procura reforçar a noção de que em todas as áreas há os que se esmeram em Conceituação e Método aplicáveis à sua prática profissional. Mas há também os que consideram isso supérfluo e até desnecessário, por considerarem que o que importa é mesmo a cifra ao término e ao cabo. Para estes últimos não há a preocupação, pois consideram que os demandantes pouco sabem e por isso tanto faz.

No decurso de minha experiência, e por diferentes vezes, me defronto com cursos ou consultorias oferecidas que pecam exatamente pela falta de compromisso ético com o rigor e a qualidade do que se oferece. Em alguns casos, tais cursos ou consultorias apresentam fragilidades conceituais, técnicas, metodológicas e chegam a ser oferecidos de uma forma mercadológica, onde preços e certificados são oferecidos e suas entregas muitas vezes, à domicilio!

Consigo compreender que existam, na livre concorrência e nas leis de mercado, sistemas mercadológicos tais como os descritos acima e que também existam alguns profissionais que se submetam a isso. O que definitivamente não sou capaz de aceitar são fragilidades conceituais e muitas vezes grandes equívocos propiciados pela tábula rasa da ausência de consistência teórica e intelectual sendo oferecidas como vantagem e capacitação.

Exemplo neste sentido é a área de Gestão Documental, por excelência uma área multidisciplinar, e isto lhe dá como característica predominante a possibilidade de trocas e experiências com diferentes saberes. Mas simplesmente não pode ser confundida e colocada de uma forma como se tudo pudesse estar junto e misturado, sem um detido e aprofundado estudo dos diferentes conceitos que a compõe.

Dentre eles cito os que são mais gritantes e perceptíveis na área que atuo: Memória Institucional, Gestão Documental, Processos Híbridos (microfilmagem e digitalização) e célebres frases indevidas e erradas como: “arquivos inativos”, “arquivos mortos”, ou afirmar que Arquivo seja Memória Institucional e que GED é Gestão Documental. Usual é também considerar que Informação possa ser tomada como Conhecimento. Algo impensável, já que Conhecimento representa uma a informação processada e transformada em experiência pessoal e intrasferível.

Pode ficar ainda pior quando técnicas são confundidas, como por exemplo, não saber diferenciar storytelling, depoimento, história de vida ou entrevista e de como estes poderiam ser realizados em um Projeto de Memória Institucional.
Ou não ser capaz de entender como a Memória Institucional acaba sendo uma parte importante do que seja a Memória Social, e que esta definitivamente tem que ver com Tabelas de Temporalidade Documental, e NUNCA com colecionismo ou escolhas que compõe uma lógica que está há anos-luz de ser um Método adequado. Coloco propositalmente temas que se tocam, mas são de áreas diversas e possuem concepções teóricas e metodológicas diversas, não porque seja errada a interdisciplinaridade, mas sim a incapacidade por parte de alguns de transitar por todas estas áreas sem praticar alguns equívocos conceituais.

Infelizmente tenho visto muitos confundirem Linhas de Tempo e “relíquias institucionais” com Memória Institucional e com História.
Em outros casos, vejo Memória Institucional ser confundida com Arquivo. Apesar dos arquivos fornecerem subsídios para que se possa chegar ao que denominamos Memória Institucional, Arquivo NÃO é Memória Institucional. Assim como Memória Institucional NÃO significa uma cronologia composta a partir da produção de documentos, como querem alguns arquivistas.
Alguns usam a expressão “resgate de Memória“, como se esta fosse uma ‘entidade’ a ser buscada em alguma parte, para ser embalada e mostrada como produto. Esquecem-se ou simplesmente não sabem que a Memória é forjada no território social, que é constituída a partir da História e que esta não existe à priori: é uma construção subjetiva a partir de um determinado ponto de vista e/ou repertório, em última instância é forjada a partir de relações sociais complexas e que possuem diferentes vetores.

O “equívoco” é grave quando se supõe que a partir de escolhas realizadas por áreas de Comunicação ou Marketing se acumulem documentos e objetos para formar o que chamam de Memória Empresarial ou Museu. Cabe sempre lembrar que documentos NÃO nascem para ser isso ou aquilo. São produzidos no âmbito de FUNÇÕES desempenhadas por pessoas ou organizações e por isso, a escolha aleatória por terceiros não passa em grande parte de achismos e de reunião de objetos e coisas que poderiam bem compor um “gabinete de curiosidades”. Decidir por critérios outros que este ou aquele documento ou objeto é histórico é, em grande parte um erro que não se sustenta por rigor teórico e metodológico. Ainda que se faça esta ou aquela pesquisa denominada histórica, esta está longe de ser rigorosa. Representa apenas uma forma de maquiar e dar lastro à coleção reunida por objetos e eventuais ditos documentos.

São portanto, equívocos cometidos em série e que atinge de morte áreas como a Arquivologia e a História.
Há também equívocos que consideram que a produção de documentos arquivísticos da Administração Direta e Indireta de Órgãos Públicos são Memória Institucional, o que NÃO é real. A Memória Institucional é uma construção e não fruto apenas de Tabelas de Temporalidade (apesar destes documentos ser utilizados como fontes). Ainda dentro desta mesma esfera e no campo da Administração Pública, os documentos permanentes (que são os de valor histórico) devem cumprir seus prazos legais como tais. Poderão ser utilizados como fonte histórica, mas NUNCA ser subtraídos dos conjuntos documentais de que são parte. Aqui temos um exemplo bem acabado do seja teoria e metodologia aplicáveis à diferentes áreas e que possuem em comum um conjunto documental. Uma área NUNCA poderá prescindir da outra ou suplantá-la.

Também NÃO é Memória Institucional elaborar Linhas do Tempo ou escrever textos bonitinhos para integrar livros comemorativos ou mesmo exposições. Não é também colecionar imagens num álbum de fotos antigas, ou fazer colagens de ‘curiosidades’. Reduzir o trabalho a isso significa oferecer “perfumarias” desprovidas do que seja o verdadeiro significado da Memória Institucional. É preciso ir muito além disso. Como repito constantemente: a Memória Institucional não é um produto em si. É sim, meio para fortalecer a Identidade e Cultura Organizacional. É favorecer a produção de Conhecimento e Inovação dentro das organizações além de ser importante na valorização do Capital Intelectual nas organizações.

São tão graves esses equívocos que, colocar tais termos em cursos ou consultorias oferecidas, mostra à partida quão grave e preocupante é a qualidade do que se abordará! Quem se propuser a ir por esta seara deverá estar firmemente embasado por 4 áreas, talvez 5: Arquivologia, História, Tecnologia, Biblioteconomia e Gestão. Sendo a História a mais complexa e com maior rigor de leituras e metodologia. As demais áreas são técnicas e de aplicação. Diante disso, conceitos caros à História como Memória, Identidade, Sociedade, Cultura, etc, devem ser tratados a fundo e muito bem fundamentados. Utilizar tais conceitos sem conhecimento de causa é pelo menos uma temeridade.

Vejo a multidisciplinaridade como meio eficaz de aprendermos e nos esmerarmos com o aprendizado e nunca, nem que seja por um minuto sequer apropriar-nos de forma errada, equivocada ou despretensiosa de uma área tão grande de conhecimento.

Não aceitem ser ludibriados! Solicito que tenham atenção. Verifiquem, analisem, peçam indicação.

Um diagnóstico preliminar
A formação profissional, metodológica e técnica é algo sério e todos devemos zelar por isso! Se não souber avaliar, peça ajuda de quem saiba! Não temos que saber tudo sobre tudo, mas temos o dever de esclarecer quando houver problemas graves.

Um equívoco custa caro ao seu emitente, mas pode ser muito mais caro ao consumidor do mesmo! Exatamente por preocupar-me com os que buscam o saber é que estou me posicionando. Os discentes ou clientes muitas vezes, não possuem ferramentas para discernir, às vezes são jovens demais, inexperientes e oriundos de outras áreas. Por isso, temos que nos colocar e esclarecer quando possível quando detectamos tais problemas.

Acho que é um misto de várias coisas, em especial para os casos de cursos para que tais problemas ocorram.
De um lado, há uma busca de ter sempre na prateleira alguma coisa de consumo rápido e raso… sem grandes compromissos ou aprofundamentos. Este uso é comum, e temos casos de conteúdos ficarem ali sendo “fornecidos” por anos à fio. Já vi casos que os docentes morreram e o conteúdo permanece ali disponível. Isto em geral ocorre com modalidades em formado EaD previamente gravados, ou mais recentemente em formatos de conteúdos online. Estes obedecem uma lógica de oferecer ao maior número possível de pessoas o mínimo sobre algum tema. Com isto possuem um atrativo simples: custos módicos, certificados rápidos e a fantasia de capacitação.

Em outros casos, pode haver má fé: pessoas apropriando-se de ideias e proposições de outros e tentam costurar algo que sirva à vários “corpos”.

E numa que talvez seja a forma mais grave, que é a falta de cabedal e sustentação intelectual e conceitual que compromete a formação de outros. Considero essa a forma mais grave pois quando ensinamos estamos nos comprometendo com a ética da partilha de Conhecimento, mas este deve assentar-se de forma sólida numa formação devida. Nunca poderá ser aceitável uma pessoa que não seja de determinada área ser irresponsável de abarcar saberes que desconhece, ou que os saiba apenas de superfície. O que digo, é que não há problema algum em visitar áreas afins, beber e constituir perspectivas para atuação pessoal e profissional. Mas nunca apropriar-se indevida e equivocadamente daquilo que não sabe só como forma de tornar palatável a venda de um produto ou serviço (no caso aqui me refiro a cursos de capacitação e/ou consultorias).

Talvez o maior remédio que temos contra isso é que as pessoas aprendam a selecionar.

Creio que muitos espaços são indevidamente ocupados exatamente porque os que o deveriam fazer isso deixam as brechas.

Uma torre fortificada numa Ilha da Fantasia

Cito como exemplo, a minha área – as Ciência Humanas -, que é também território de aplicabilidade e prática e infelizmente muitos acham que só são profissionais se estiverem na academia… deixam com isso, espaços que poderiam ser seus na sociedade, em empresas e instituições, para serem ocupados por profissionais que possuem talvez boa vontade mas lhes falta consistência, aprofundamento e na maioria das vezes, leituras da formação.
Seria interessante que os profissionais se desencastelassem da academia e fossem ao mundo real atuar de forma aplicada quer ministrando capacitações, quer prestando assessorias técnicas ou consultorias!
A sociedade ganharia muito!

O fato a que me refiro é de que muitos profissionais encastelam-se em suas “fortalezas” intelectuais: produzindo apenas para seus pares e deixam de alcançar o cerne da sociedade. Mas creio que discursos esvaziam-se quando ficamos em discussões epistemológicas, conceituais ou de especialidades sem o pé na realidade. Aí o que temos é apenas, e tão somente, conteúdos que massageiam egos e inflam vaidades.

Preocupo-me muitíssimo, e aí falo dentro da minha área de atuação (sou historiadora, de graduação à pós-doc), que exista essa cisão de que o profissional de gabinete quase nunca saiu de sua zona de conforto e em muitos casos, não conhece as demandas de mercado e das instituições que não sejam as acadêmicas. Sabe pouco sobre a aplicação de tantos conhecimentos discutidos apenas na academia em um formato teórico. A metáfora que gosto de usar é a da Ilha da Fantasia. Alguns intelectuais ficam apenas dentro da academia, numa bolha que não o coloca no confronto direto com as demandas da realidade. Seria muito interessante que tais intelectuais pegassem seus barquinhos e fossem ao continente para ver o que se passa. Voltariam com outros olhares para a sua pequena ilha.

O inverso também é verdadeiro. Alguns saem da Ilha, vão ao Continente e NUNCA mais retornam à sua origem. Ou seja, afastam-se do rigor que é tão caro e necessário na Academia. Acredito sinceramente que o profissional do século XXI precisa e deve trafegar entre a ilha e o continente e saber levar de cada um o que há de melhor. Este seria o melhor dos mundos.

A História durante toda sua existência, e com especial força durante todo o século XIX, lutou para instituir-se e figurar como Área de Conhecimento. São discussões longas, cujos iniciadores não viveram para ver o final. Mas é muito importante que as aproximações feitas entre áreas diversas representem um esforço sério de embasamento teórico, metodológico e técnico (quando for o caso).

Arquivologia e Biblioteconomia iniciaram essas discussões ainda há pouco e há também as Ciências da Informação, que reivindicam um outro espaço de ocupação, o que indica uma longa e árdua discussão em campos teóricos e epistemológicos não cabíveis de fato ao espaço deste artigo.

Uma proposição
Acho que deve haver a busca do caminho do meio: há sim discussões teóricas, metodológicas e epistemológicas no universo de constituição e aplicação desses saberes, mas há também um território de aplicabilidade que não se encontra na academia e que nem por isso deva ser feito de forma pouco consistente. Um não deve servir de impedimento ao outro. A responsabilidade fica assim na mão de profissionais que devem estar inteirados, atualizados, preocupados e responsavelmente determinados a aplicar os mesmos em suas respectivas áreas de atuação.

Considero que estes equívocos ocorrem exatamente porque muitos profissionais de academia não assumem seu papel de agentes no âmbito social e fornecem as brechas para que profissionais sem muitos escrúpulos mascateiem o que deveria ser algo mais sério: que é a formação profissional. Este é um ponto que me inquieta.

Às vezes, os pesquisadores nos cursos de pós graduação (aqui refiro-me mais aos Mestrados e Doutorados) permanecem num mundo à parte e o que digo é que toda essa competência de fundo conceitual, metodológico, teórico precisa aparecer na sociedade e nos produtos oferecidos a instituições públicas e privadas e que não fiquem restritas às salas e discussões em aula. É altamente salutar fazermos isso! Em hipótese alguma sou contra a produção acadêmica e escrever e compartilhar deve ser nossa preocupação.
Não me coloco contra a realização de cursos e capacitações oferecidos em ambiente de web. Desde que os respectivos profissionais sejam responsáveis e tenham estofo intelectual, teórico e metodológico para isso. Esta responsabilidade sim, fará com que haja produção de Conhecimento. E é com ela que me preocupo e esforço todos os dias. 

É contra esse mercantilismo que me coloco!

A dica que fica é: quer aprimorar seus conhecimentos? Estude, investigue para poder saber escolher entre joio e trigo. 

Ou então:

Quino, Picasso revisitado

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Interdisciplinaridade: essencial para profissionais de Informação

Por: Eliana Rezende

Introdução*
Sou uma humanista com fortes tendências a inter, trans e multidisciplinaridade e isto não surgiu como algo oferecido numa formação universitária, mas sim a partir de demandas e “leituras” do universo em que atuava.
Historiadora de formação, arquivista por vocação, neste caminho cruzado transformações sociais, culturais, tecnológicas, foram determinantes para entender que espaço ocupar com a bagagem que trazia. Herdeira de uma tradição que vinha do mimeógrafo e máquina de escrever, assisti o surgimento, uso e massiva utilização de tablets e smartphones, com conteúdos armazenados em nuvem, linkados e hiperlinkados de formas diversas.

Leitores, leitura, produtores e armazenadores de conteúdos e de dados, descobrindo novas formas de se apropriar da informação e produzir conhecimento.
No espaço de minha carreira, o mundo se travestiu e foi preciso entender e atuar de forma a não perder o que se tinha, mas ao mesmo tempo não vagar por um não lugar.

Minha proposição aqui é muito mais expor uma inquietação provocativa e lançar aos futuros historiadores e demais profissionais das áreas de Ciências Humanas e
Aplicadas que lidam com a informação, questões em relação ao seu trabalho de investigação e lida com as fontes produzidas na contemporaneidade de princípios do século XXI, suas opções e formas de atuação.

O caso do historiador é específico, lida com fontes: rastros, pistas, vestígios deixados, voluntária ou involuntariamente, que atravessam épocas, transpõem espaços, vencem intempéries, descasos, o tempo e as muitas formas de deterioração intrínseca e extrínseca de seus suportes. Tais fontes encontram por parte do ofício do historiador e demais cientistas sociais diferentes usos, e em vários casos funções e pertencimentos que são próprios do fazer-se “prova” ou “testemunho”. Compõem uma narrativa multifacetada de pessoas, lugares, culturas, sociedades.

Artífices que tecem intrincados caminhos deixados por fontes prováveis e improváveis, os historiadores, transformam-se em porta-vozes de um tempo, de uma trajetória feita por questões e investigações. Conexões são feitas e refeitas, caminhos investigativos desbravados a luz de diferentes métodos e matrizes teóricas. Em muitos casos, o caminho é árduo e construído a partir de hiatos, de não-ditos, de silêncios e omissões. Urde-se a construção de uma trama que circunda um objeto fazendo disso a História, nem certa nem errada, apenas por um ângulo ou prisma diverso. (REZENDE, 2014)

Diante de tal complexidade, laboriosa e detalhada, que cada fonte solicita e da quantidade de suportes e de registros de que dispomos, oferece-se ao olhar pesquisador ampla gama de produtos que servirão como fonte de pesquisa e matéria-prima para a História, e em muitos casos para a produção de Conhecimento. (REZENDE, 2014)

Por outro lado, vivemos num tempo coetâneo (DUQUE, 2011) em sua essência.
Nossa sociedade vive a construção de um novo paradigma sobre a forma como se produz e gere conteúdos e informação. E por isto, a atuação como arquivista surgiu para mim como uma demanda e uma ânsia de continuar a assegurar ao futuro matéria-prima de seu passado. Já que o arquivista trabalha no presente, zelando pelo passado para garantir que o futuro tenha uma Identidade a partir de sua herança pregressa.

O arquivo representa para o historiador a brecha mais desejável, a fotografia de um instante paralisado em palavras do dia a dia, do miúdo. Não nasce como na narrativa historiográfica ou literária a partir de uma intenção de escrita e discurso. Simplesmente acumula-se sucessivamente em pequenos trechos de longas histórias. O arquivo não nasce para entreter, instruir ou informar. É apenas um instrumento administrativo usado com fins de prova (nos casos de tributos, registros acadêmicos, registros médicos, etc.) e muitas vezes de punição (quando tomamos os casos de arquivos judiciários).

Ao leitor desavisado parecerá que o arquivo possui notas de verdade. Que de repente aqueles nomes, relatos, lugares e acontecimentos falam diretamente a si. Ganham vida numa dança que mistura fantasia e realidade, imaginação e inquietação investigativa. Dos arquivos emerge o vozerio do passado de forma ruidosa e barulhenta nos permitindo um enxergar retalhos de vidas e existências. Nem verdadeiras, nem falsas: apenas prismas.

Esta é magia dos arquivos: a possibilidade do mergulho num outro tempo por meio de registros da vida cotidiana, pequenos delitos, crimes ou desavenças de rua, discursos registrados em atas públicas, ou listas de nomes, impostos, terras. Uma gama sem fim de possibilidades, de personagens, de situações de vida urbana, social, cultural.

Os relatos chegam-nos fragmentados, às vezes mutilados. O trabalho minucioso de reunir, organizar e disponibilizar tais fragmentos é a responsabilidade maior do arquivista. Em suas mãos está a possibilidade de narrativas serem construídas, caminhos percorridos, trilhas visitadas. Reunião e organização existem para que a dispersão, fragmentação e novas construções se deem na poderosa urdidura de pesquisadores. Um caleidoscópio de narrativas propiciadas a historiadores e outros pesquisadores pelo trabalho meticuloso de arquivistas.

Os arquivos são, portanto, feito de excessos: de possibilidades, de falas, de narrativas, de suportes, de informações várias. É horizonte para o que pesquisa e para o que dele cuida. Por isso meu fascínio e dedicação em ajudá-los a prosseguir em sua missão de perpetuação: ora como historiadora, ora como arquivista. Diante disso, não é difícil perceber que as preocupações com acervos em diferentes instituições impõem reflexão e aplicação de metodologias e procedimentos que garantam o acesso à informação contida nestes documentos sob os mais variados suportes para as gerações futuras. Seria inadmissível que estes registros não vencessem o tempo e não alcançassem olhos, corações e mentes atentas para deles extrair um relato, um viés, uma interpretação.

Mas arquivos e documentos não se apresentam apenas em formatos analógicos. Foi-se o tempo. Apesar disso, ainda temos nos documentos analógicos a grande concentração de massa documental.

Deste universo de informação farta, mas com obsolescência galopante, atuo de forma a encontrar alternativas que conciliem passado, presente e futuro. Afinal, é preciso se colocar diante destes tempos de imediaticidade, produção em massa e, ao mesmo tempo, obsolescências e transitoriedade de suportes.

O COMPROMISSO PROFISSIONAL DOS PROFISSIONAIS DE INFORMAÇÃO
Gosto sempre de incentivar as pessoas interdisciplinarmente. Não creio num mundo compartimentado, creio num mundo que integre vários modos de pensar! É este novo mundo que se descortina para nós. Buscar conexões possíveis entre áreas e manter o espírito aberto para dialogar, e se surpreender,é o que nos deve manter ativos e atuantes.

Num mundo de tantos excessos, a importância maior não está em apenas produzir informações, mas essencialmente em distribuir criativamente o que se tem e manter uma inquietação necessária aos acréscimos. Para tanto, não creio em receitas prontas, e muito menos daquelas que seguem em listas com os 10 pontos, os 6 ou os 5 pontos. Isso não existe! Creio que o primeiro passo efetivo a ser dado é reconhecer que as receitas não servem às pessoas e suas atuações profissionais! São eficientes na culinária! E dependendo de quem as faz ainda pode dar errado, só com perdas de ingredientes.

De novo insisto que a questão da interdisciplinaridade me seduz e não consigo pensar em trabalho que não seja assim, em especial quando este se volta à economia social – locus essencial de minha atuação.

Gosto dos grupos e das possibilidades advindas por múltiplos olhares. Em minha experiência vejo a necessidade de muita flexibilidade. É um esforço pessoal, diário e constante, mas me sinto recompensada. Preciso lidar com pessoas de diferentes áreas e formações para que juntos possamos construir nas instituições normas, procedimentos e ações em torno da Gestão de Informação e seu uso para a produção de Conhecimento e Inovação.

No desempenho de atividade, noto que o grande hiato entre diferentes áreas é a segmentação e, destarte, a dificuldade de interlocução.
As pessoas costumam estar sempre muito voltadas para o seu ‘centro’ e desperdiçam oportunidades de ver o que está ao seu redor. A pretensa busca de especializações criou nichos segmentários e cada vez mais os profissionais sabem menos sobre o que lhe circunda, e onde estão inseridos.
Considero isto erro grave nas áreas ligadas às Ciências Humanas e Aplicadas.

Questiono muito sindicalizações e brigas mesquinhas e pequenas sobre quem deve ocupar este ou aquele espaço ou vaga. Fico perplexa em saber da existência de órgãos de controle para inspecionar e multar! A compartimentação acaba sendo responsável por vermos historiadores que não sabem sobre temporalidade documental e usos e aplicações que são da seara da Arquivística.

Arquivistas por sua vez cometem equívocos imensos ao tratar de aspectos relacionados à Memória e na compreensão de conjunturas sociais, culturais, históricas entre outros. Esquecem-se que documentos são produzidos em relações sociais.
Bibliotecários perdidos tentando tratar conjuntos documentais arquivísticos como coleções bibliográficas e com um gap imenso em relação a aspectos culturais, sociais e históricos na construção de acervos através do tempo. Sinto que aos historiadores falta uma carga preciosa e técnica de formação para lidar com fontes, documentos, informação. E aos arquivistas, bibliotecários uma formação técnica demais e que os faz ter perdas imensas de leitura e formação social/cultural. Não conseguem compreender relações e inter-relações que acontecem fora de normas e procedimentos técnicos. Falta-lhes em boa parte das vezes uma visão mais holística e integrada do campo social.

Creio que neste ponto sou muito mais adepta à metáfora do fazedor de pontes. Não deve haver muros nem divisões e acho salutar que as fronteiras sejam movediças e todos troquem suas fontes e aprendam com a flexibilidade. Essa é uma característica muito importante a ser desenvolvida por profissionais concatenados com os novos tempos.

Valorizo muito os que sejam capazes de saber liderar equipes trans e multidisciplinares. Os que conseguem ter sempre uma atitude de facilitador para que trocas e aprendizagens se façam. Para isso acredito muito naquele que tem uma atuação empática e de acesso ao outro: só assim o valor de subsidiar esclarecimento de dúvidas, estímulo à interação e o compartilhamento se efetivarão.

Os profissionais de Informação neste século XXI precisam ter características especificas.
Precisam ser alguém que não apenas conheça, mas que faça circular atributos da cultura social, institucional: valorizando-a e aprimorando-a tanto quanto possível a partir da experiência de todos. Precisam ter espírito curioso e interessado: ser humildes e reconhecer que aprendem sempre, e todos os dias. E mais do que isso: devem ser generosos em partilhar e distribuir o que sabem! Devem ter profundo interesse pelo aprimoramento e aprendizagem não apenas de si próprios, mas de todos os que lhes cercam coletando de cada oportunidade e pessoa o seu melhor.

De outro lado, noto que as pessoas ao se formarem esperam ter a contrapartida dos anos de estudo, dedicação e, muitas vezes, dinheiro investido, quer em mensalidades, quer em livros e cursos. A estabilidade acaba sendo um grande chamariz para que muitos busquem um concurso público e lá enterrem todos os dias de sua vida. Entretanto, muitos se esquecem de que é preciso ter um perfil para isso. Do contrário, a tão desejada segurança se transformará na mais absoluta prisão. Daquelas que temos as chaves e não conseguimos partir, como se arrastássemos correntes pesadas com bolas de ferro presas aos pés.

O fim disso todos sabem: resmungões convictos reclamam todo o tempo de rotinas e salários, como se alguém os tivesse obrigado a isso ou aquilo. Impacientam-se e decidem enclausurar-se diante de uma tela classificando e codificando, esquecendo-se que o fim último de tudo o que faz deveria ser a sociedade, o Humano em última instância.

De outro lado, outros tantos sonham com uma carreira Docente numa Universidade Federal ou Estadual. Nada de errado, mas “infelizmente” (coloco entre aspas porque considero correto) o recém Mestre ou Doutor está longe de estar em condições de assumir uma cadeira em qualquer boa Universidade. Precisará construir sua carreira. Muitos desses são o que chamo de “alunos profissionais”. São PhD em bolsas, seminários e artigos. Mas falta-lhes o essencial.
Só possuem diplomas!

Aqui enveredo para outra coisa importante: ter um diploma não dá uma carreira a ninguém! Mas há uma diferença grande entre profissão e carreira e essa precisa de tempo para se consolidar. Sou muito adepta de que mesmo docentes exerçam funções de consultoria ou afins, para que consigam enxergar as reais demandas de mercado (entendida como a sociedade do mundo real, e não a academia que em muitos casos representa uma bolha ideal). Vejo que, em muitos casos, falta uma perspectiva empreendedora de arriscar: aplicar toda a teoria e quilos de bibliografia para fazer a sociedade rodar.

Enfim, olhar a carreira como uma possibilidade de empreender e inovar em seu ramo de atividade.Ousar ter ousadia, experimentar! Não há espaço para tantos Mestres e Doutores.Terão que definitivamente encontrar formas criativas de se empoderar do seu diploma e conseguir construir uma carreira que faça sentido hoje e que entregue ao futuro uma herança. A sociedade de consumo se estende a tudo e não apenas a objetos materiais. E é em relação a tais temas que temos que pensar.

As dificuldades que encontramos com este novo momento de nossa história educacional coloca-nos o desafio de lidar com um novo conceito de atuação e relação a ser estabelecida entre discentes e docentes, a produção de conhecimento e sua aplicação profissional. A formação geral dos discentes revela que o território da aplicabilidade está sempre muito distante dos livros – pouco se escassamente lidos, diga-se de passagem. A mudança de nomes de disciplinas e conteúdos não é sinal de atualização.

Em verdade, há que se mudar paradigmas e modelos mentais! O que temos presenciado nas Universidades são novos rótulos para disciplinas, especializações e afins usadas com velhas formas de aplicação. Instigo a todos a pensar que a passividade ante ao dado é que deve ser combatida, e ser amplamente discutida para causar inquietação necessária, para produzir perguntas que mereçam boas construções de soluções para aplicação.
Nunca se deve achar que o diploma é o seu objetivo. Ele é apenas a primeira porta a se abrir.

Lembram-se do Filme Matrix?

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  • Artigo publicado originalmente com o título “Um Ensaio de Ego-História” na revista SUSTINERE – Revista de Saúde e Educação da UERJ, 2016

Referências:

  • BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo, Editora da UNESP, 1992.
  • CHARTIER, Roger. A ordem dos livros – leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 1998.
  • CHARTIER. Robert (Org). Práticas de Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996.
  • CUNHA, Maria Teresa. Territórios abertos para a História. In: O historiador e suas fontes. São Paulo, Contexto, 2011.
  • DUQUE, Cláudio Gottschalg (Org.). Comunicação Científica Contemporânea e de Vanguarda. Ciência da Informação Estudos e Práticas. Brasília: Centro Editorial, 2011.
  • FARGE, Arlete. O Sabor do Arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 2009.
  • FURET, François. A oficina da história. Lisboa, Gradiva, 1985.
  • HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes. 1992
  • LÉVY, Pierre. A Revolução contemporânea em matéria de comunicação. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 9, dez. 1998.
  • LE GOFF, Jacques. Memória/História. Enciclopédia Einaudi, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
  • LE GOFF, Jacques. CHARTIER, Roger; REVELL, Jacques. A Nova História. Coimbra, Almedina, 1990.
  • LE GOFF, Jacques; Nora, Pierre. Histórias: novos problemas, novas abordagens, novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
  • NORA, Pierre. Ensaios de ego história. Lisboa, Edições 70 Ltda., 1989.
  • PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina (Org.). Apresentação. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011.
  • REZENDE, Eliana A. de Souza. Em tempos de tintas digitais: escritos e leitores. In: Anais do II Seminário Internacional História do Tempo Presente, Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, 2014
  • REZENDE, Eliana A. de Souza. Desafios da contemporaneidade: as tecnologias como política de preservação de patrimônio cultural – documental. Disponível em . Acessado em 23/05/2016.
  • REZENDE, Eliana A. de Souza. Blog Pensados a Tinta. Disponível em . Acessado em 23/05/2016.

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