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Uma sociedade de performance

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Segundo diferentes teóricos a sociedade de princípios do século XXI deixou de ser disciplinar, como ocorria nos séculos XIX e XX e passou a ser de performance. O que significa dizer que exige-se das pessoas estar todo o tempo hiperconectadas, ser multitarefas, e estar em um estado permanente de euforia e felicidade. Substitui-se a chamada obediência pelo desempenho.
O sujeito neoliberal do desempenho é dominado pelo excesso de positividade (estímulos) em oposição à chamada negatividade.

Tudo que esteja fora disso é considerado indesejável, contraproducente.

As pessoas precisam, para serem consideradas bons profissionais, ser multitarefas. Ainda que isso signifique um grau de desatenção atroz. As pessoas quicam de um lado para o outro achando que com isso possam ter, segundo linguagem corporativa, um diferencial competitivo.

O mundo encheu-se de academias de ginástica, baias de trabalho, prédios envidraçados, vias rápidas, equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos computadorizados. Temos cada vez mais tecnologia, em teoria, para que tenhamos mais tempo. Mas, mais tempo para quê?

O que fazemos cada vez mais com o tempo que nos é ‘pretensamente economizado’?

O tempo encurta e, em verdade, as pessoas estão sempre cansadas, carregadas de afazeres e atividades. Onde foi que colocamos nossas prioridades?!

Estranhamente ao invés de, tanta hiperatividade e desempenho gerar coisas novas, encontramos em geral, a repetição incessante do igual. Cada vez mais temos mais do mesmo!

Até mesmo os vocabulários corporativos giram em torno das palavras de sempre: motivação, resiliência, eficiência, competitividade, iniciativa, diferencial, sair de zonas de conforto, etc…etc…etc…uma quantidade sem fim de termos usados à exaustão pelos chamados “mentores”, “coaches” e os que se autodenominam como “iniciadores” deste caminho de sucesso individual. Surge um mercado ávido e muitas vezes, baseados na má fé de uns sobre a boa de fé de outros.

Em verdade, a desatenção, hiperatividade e hiperconexão servem de sombra para ampliar horizontes e descobertas que só podem ser alcançadas a partir do sossego da mente e a capacidade de observação e quietude do espírito. Daí que o que acaba contando são comportamentos que podem ser cifrados e contabilizados por dígitos. Valores essenciais deixam de ser cultivados e apreciados tanto individualmente quanto institucionalmente.
É só olhar no mundo corporativo: as cifras, as metas, os índices, os infográficos e os KPIs. Olhe nas academias, nos esportes, nas escolas, nos veículos perfilados lado a lado quando um farol se abre, nas filas em geral. Em todos os casos, se busca a prioridade, ser o primeiro, o mais rápido, o melhor.

De seres humanos temos paulatinamente nos transformado em “máquinas de desempenho” que estão todo o tempo medindo e sendo medidos a partir das cifras que conseguimos produzir.

Afinal, quem tem tempo para a observação? Para simplesmente aquietar-se? Ouvir-se? Ouvir?

Não bastasse tudo, o inicio do século XXI também nos trouxe o Home Office em meio a uma Pandemia! De repente, aquilo que já nos consumia e atormentava encontrou meios de piorar um pouco mais.
A casa e ambientes residenciais tiveram que se adaptar as rotinas de trabalho, e em muitos casos o sentido de adaptação veio em seu pleno sentido! Reuniões online e atividades domesticas sofrendo enquadramentos diversos e seus proprietários buscando formas de encontrar um meio de equilibrar tudo. Não faltaram os que começaram a considerar que na receita toda estava faltando espaço e boa dose de saúde mental.

Somado à tudo, as tecnologias que poderiam ser as libertadoras de tempo e espaço em nossas vidas tornaram-se durante todo o período pandêmico ferramentas potentes de controle e expropriação. Reuniões sequenciais, muitas vezes mais que uma em um mesmo horário. Por meio de plataformas digitais, diferentes profissionais, conheceram o que seja o “não-lugar” e levaram à máxima de otimização do tempo às ultimas consequências.
Zoom, Meet, e congêneres passaram a oferecer facilidade, mas sua fatura incluía a disponibilidade ampla, total e irrestrita. Manter-se conectado, atento e muitas vezes, bem humorados passou a ser a regra geral. O teletrabalho ofereceu o confronto com os “outros” e consigo próprio no espelho. Dia após dia olhar nossa face ao mesmo tempo em nossos pensamentos povoam nossas mentes passou a ser uma regra. Questões de autoimagem passaram a ser permanentes, intimidades passaram muitas vezes a ser desvendadas, espaços invadidos. As fronteiras antes físicas que demarcavam espaços de vivências e intimidades se perderam entre uma porta e outra e, de repente, o mundo entra com todas as suas cores, imagens e vozes para dentro de nossa casa.
A vista e o confronto com a própria imagem diariamente por horas a fio elevou as taxas de cirurgias de pequena correção: são pequenas rugas, bolsa nos olhos, botox, nariz, um contorno de lábios, manchas na pele, quedas de cabelo. O confronto externo leva a grandes embates e combates com camadas profundas de nosso ego. Descobrimos muitas vezes que a imagem no espelho não nos agrada. E isso gera um profundo, um grande cansaço…

Espaços comuns para pessoas que detinham apenas parte de nossa intimidade são retirados de nós, e as sociabilidades passam a sofrer mediações totalmente inusitadas até aquele momento. Eliminam-se rituais de convivência: um almoço, um café descontraído, uma caminhada com colegas. Tudo é subtraído de todos, seus locais de trabalho, salas, computadores, mesas, apertos de mão, abraços, sorrisos largos.
A busca de performance ainda presente exigia atenção, conexão, disciplina (sem demonstrar atrasos ou aparentar fadiga, desinteresse, etc). As janelas invisíveis nos colocavam nus, e ali tínhamos de permanecer até que nos fossem dadas a fala ou a autorização de saída.
O ambiente digital trazia inúmeros desafios e uma nova etiqueta social, que por vezes gerava ansiedade, desconforto, insegurança. Mas tais sentimentos não eram bem vindos nestes ambientes. Assim, buscar a melhor performance era imprescindível.

Mas ainda havia o espaço físico.

A convivência por tempos maiores com os membros imediatos das famílias trouxeram à tona problemas até então suplantados por agendas lotadas com compromissos de trabalho ou sempre com muita gente em volta. As agendas lotadas contemplavam todos: de pais aos filhos. Até as crianças possuíam em famílias mais abastadas e que foram em sua maioria contempladas com o Home Office tinham a agenda de escolas, cursos de inglês, balé, judô, natação. Não havia espaços de solicitação, pois todas as brechas de tempo eram ocupadas e os pais apenas administravam os intervalos, levando-os ao fim do dia para dormir. A pandemia e o estar em casa todos juntos e misturados trouxe para uma grande maioria um estresse imenso.
Em verdade, as pessoas lidavam pouco com o que lhes causava ansiedade ou tristeza porque não paravam para falar ou pensar sobre elas. Mas a partir do momento que o único local possível era estar em casa e próximo aos seus problemas mais secretos muitos começaram a se deprimir, com amplas dificuldades de lidar com tudo que vinha de dentro e do lado de fora o medo, o desemprego, políticas de governo insanas, mortes.
Para muitos foi simplesmente demais.

Cada vez mais e como imperativo de alta performance corpos cansados e sem ritmo são estimulados por diferentes fármacos: doping de todas as formas. Sempre foi assim: mentes entorpecidas e distantes para problemas próximos.
A indústria farmacológica sempre apostou nos mais diferentes fármacos: há para cansaço, sono, tristeza, ansiedade, inapetência. Mas com a Pandemia esta indústria aumentou ainda mais seus tentáculos e possibilidades para lutar contra algo que ainda não tinha uma clara definição. Desde sempre é papel desta indústria farmacêutica produzir de tudo para que tais corpos tenham a garantia de sua manutenção na linha produtiva e performática.
A adequação da indústria farmacêutica às demandas de performance pode ser facilmente medida pelo seu volume de produção. Tomemos como exemplo o ano do inicio da pandemia no Brasil:
O faturamento do mercado farmacêutico cresceu 13,6% de janeiro a outubro de 2020. Nesse período, o volume movimentado por esse mercado foi de R$ 113,02 bilhões, segundo dados da IQVIA, que auditora o setor farmacêutico. As vendas de suplementos, vitaminas, relaxantes e antidepressivos tiveram destaque nos primeiros dez meses do ano – e estão diretamente relacionadas ao momento vivido pela população por causa da pandemia de Covid-19.

Reproduzindo o filósofo coreano Byung-Chul Han, um dos representantes desta linha de pensamento, no seu ensaio “A Sociedade do Cansaço”:

“(…)”O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço a sós, que isola e divide”, conclui o autor. “Esses cansaços são violência, porque destroem toda comunidade, toda proximidade, inclusive até a própria linguagem.”(…)

O interessante e segundo o autor, somos escravizados mas não por outros. É uma demanda interna que enxergamos como sendo necessária para a nossa atuação. É uma escravidão onde temos a chave. Em suas palavras: somos prisioneiros e vigiais.
Este sentido de exploração que obedece uma demanda interna é muito eficiente já que produz a falsa sensação de “liberdade”, de “escolha” e se casa muito bem com uma concepção do que seja o neoliberalismo na vida das pessoas e o chamado espírito “empreendedor”.
Se casa muito bem também com a concepção muitas vezes equivocada de que são seus erros que causam seus fracassos, quando nem a sempre a culpa pode ser toda atribuída a si próprio. Mas é a melhor resposta a se dar ao carcereiro de sua alma.

Em resumo:

Embriaguez química e digital: excitação e atordoamento de toda uma civilização.

A incapacidade de se lidar com a dor, o sofrimento, a angústia são afastadas à todo custo, quer por drogas vendidas em farmácias, quer pelas drogas das indústrias de bebidas. O alívio é buscado como forma tanto de manter-se em todas as tarefas, ou como forma de entorpecer os sentidos e simplesmente lidar com a demandas da existência.

Para onde vamos se respostas humanas não podem mais ser dadas, sem ser tomadas como uma patologia que precisa ser imediatamente medicada?

O sentido de urgência e pressa chega também com a forma como se lida com as emoções e as muletas buscadas são de todas às ordens. A oferta é grande e pode ser de remédios à drogas, ou ao mercado da fé. Aos que não se encaixam nestas fugas possíveis há o Burnout (nome da Síndrome do Esgotamento Profissional – um distúrbio emocional que possui como sintomas principais a exaustão, o estresse e profundo esgotamento físico).

É preciso compreender que a sociedade de performance transforma a todos que não se dão conta disso em peças de engrenagem. O seu uso extenuante apenas levará a sua reposição, e na atual conjuntura há muitas esperando sua vez de ser sucateada.
É preciso ter crítica e fazer perguntas a si próprio sobre a forma como conduz sua vida e seu trabalho.

Afinal, para onde vai com tanta pressa e tão cansado?

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* Versão revisada e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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Bibliografia:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Giachini, Enio Paulo. 2. 2017. Vozes, Petrópolis: 128

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Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Há muitas formas de visitar a morte.
Às vezes, a visitamos pela experiência sofrida assistindo a debilidade que avança, os dias que chegam ou o convívio com uma sentença de morte provocada por uma doença sem cura, ou um acidente que ceifa vidas e planos.
A experiência sentida para todos estes casos é a da perda ou dor. Paira sobre nossas mentes e nos faz saber que, mesmo em sua ausência, sua presença pode ser constante enquanto não chegar.
Seu lugar em nossas vidas está também nos espaços que ocupa. Espaços simbólicos, emocionais ou físicos, não importam. Os tempos e espaços destinados para a morte em nossas vidas ocupam nossos corpos, mentes e até mesmo lugares específicos para seu culto/lembrança.

Dentre os lugares de morte o cemitério talvez seja o de maior representatividade no mundo. E aqui, independente de culturas ocidentais ou orientais é um espaço do Sagrado e de reverência ao que ele guarda. 

Os cemitérios são exatamente o local, e a cidade dos mortos, no mundo dos vivos. 
Representam esta cidade que está calada e desenhada, porém viva como um recado, uma lembrança, um alerta. É arquitetura esquadrinhada, que possui seus lugares e hierarquias e até mesmo imposição de posições sociais, prestígio, status e valores que podem ser observados através de todo um conjunto de símbolos que chamamos de arquitetura tumular. Exemplos não faltam de elementos desta arquitetura de vivos para o mundos dos mortos, e neste ponto apresento alguns destes elementos que utilizamos como estudo na área que denominamos em História de Cultura Material.
Os jazigos, seus túmulos e toda a referência mobiliária e de objetos prestam-se a um excelente meio de análise e abordagem de um tempo: oferecem ao pesquisador referências interessantíssimas e muitas vezes ausentes em outros tipos de fontes como: nomes, datas de nascimento e morte, preferências sociais, culturais e relações familiares trazidas por meio de dedicatórias e despedidas onde os nomes e laços de parentescos ficam expostos.
Convertem-se em acervos “vivos” da Memória de um tempo e das vidas de seus ocupantes, os seus laços e suas relações.

Há todo um conjunto de signos iconológicos que favorecem a interpretação sobre o período de sua produção e em qual contexto social e cultural foi utilizado como representação. Em tempos mais recentes as fotografias surgem como outro elemento carregando mais informações sobre o morto. Sua fisionomia, e em alguns casos, sua sisudez ou sorriso nos desafiam o olhar. Fixados num determinado espaço/tempo nos dirigem o olhar,  nos inquirem… Recortados em um contexto são imagem cristalizada de um projeto que se interrompeu. A imagem, por excluir a morte, é carregada de vida e energia. Talvez por isso, tenhamos a empatia do olhar que se comunica e troca. É impossível não pensar sobre aquele rosto, a história que tinha e como chegou ali: alguns muito cedo, outros após uma existência plena com cônjuges, filhos, netos e até bisnetos.
Englobam-se no que chamamos arquitetura tumular a arte representada pelas esculturas que ornamentam os túmulos. Representam visões de mundo de um tempo, de uma sociedade, de grupos familiares e pessoas, fornecem elementos caros à construção de uma memória de si e do seu entorno social. Um conjunto rico, e muitas vezes valiosíssimo de expressão artística, fazendo muitos cemitérios ter programas de visitas guiadas por seus túmulos para amantes desta arte ou para acadêmicos de diferentes áreas.

Muito interessante entender que os cemitérios, tal como as cidades tem uma história de implantação e definição tanto estética quanto dos seu lugares e limites no tecido urbano. Não surgem espontaneamente, e são sim fruto de um projeto social para estar inserido no mundo dos vivos.

Por isso, é preciso entender as circunstância em que os cemitérios foram se secularizando. O espaço destinado aos mortos era sempre um local de proximidade: eram colocados, por exemplo, nos terrenos em volta das casas, ou nos espaços considerados sagrados das igrejas e seu entorno. Isso propiciava a proximidade e alguma privacidade a estes corpos abandonados pela vida, ceifados por diferentes motivos. A secularização dos cemitérios levou estes corpos a compor um outro espaço só que desta feita coletivo. Os mortos seguem assim um destino comum reservado a todos e longe das casas e seus quintais que os abrigaram por toda vida. Neste local, o espaço da morte é definido e demarcado para estar nas bordas das cidades e a partir de uma concepção higienista de sociedade, onde a doença e a morte precisam ser isoladas e retiradas do convívio familiar. Experimentar a doença e morte deixa de ser um ato corriqueiro e familiar (algo que até então era usual e costumeiro) e começa a possuir espaços definidos para isolar, cuidar e quando não for mais possível, enterrar. A doença, a dor e a morte eram assim levadas para outros territórios. São territórios da morte.

Os túmulos de uma mulher católica e seu marido protestante, que não puderam ser enterrados juntos devido aos regulamentos do cemitério. Eles morreram na década de 1880.
Nota: as mãos segurando sobre a parede divisória. Localizada em Roermond, Holanda.
Por: Lindsey Fitzharris

Uma cidade aprisionada
A sociedade deste período (e falamos em algo a partir do século XVII e XVIII, com maior incidência a partir do século XIX) passa a ter diferentes instituições que procuravam isolar, controlar e disciplinar. É deste período que vemos o surgimentos de instituições como quartéis, conventos, escolas, manicômios, hospitais e porque não cemitérios?! A lógica para todos os casos é sempre a mesma: murar, cercar e facilitar a vigilância fornecendo espaços esquadrinhados, milimetricamente individualizados, entradas e saídas quase que exclusivas e horários rígidos para trânsito e permanência. A individualidade garantida é a do próprio corpo que ocupa celas, cadeiras, camas ou para nosso caso, o jazigo, a sepultura.

Para os cemitérios, a ordem de fechamento, que se mantém até os dias de hoje, revela a nítida separação entre o simbólico: Luz e Sombras, que remete ao perigo das almas que habitam o “mundo subterrâneo e escondido das profundezas”. Não devendo por isso, comunicar-se com o mundo dos vivos no período onde reinam as Trevas.

Esta cidade dos mortos a que nos referimos acima recebe dos vivos, em seus primeiros séculos, consideráveis investimentos: a morte e os sentimentos em relação a ela precisavam ser mostrados por meio de mausoléus ricos em detalhes, com muitos acessórios e peças vindas da Europa. Artistas, escultores e artífices da morte eram contratados para entalhar detalhes de vida e personalidade do morto em pedras, mármores, granitos. materiais que pela dureza e durabilidade remetiam à Eternidade, Permanência, Presença do Ausente.

À medida que a sociedade sofre a perda do poder aquisitivo, os túmulos deixam de ser locais de ostentação e a arquitetura tumular parece empobrecer. É o período de popularização de cruzes, sem a riqueza escatológica de períodos anteriores. A cor predominante continuava sendo o branco. Mas o investimento na morte se reduz enormemente.

Em períodos de maior opulência, como entre os anos 1900 e 1930 no Brasil, a morte passa a ser vista como um grande espetáculo e momento onde se pode mostrar a força e o poder.

Com isso toda uma produção artística atende esta população endinheirada e opulenta das cidades que se metropolizam. As cruzes passam a ser paulatinamente substituídas por crucifixos.
Tal como a cidade extra-muros, não há homogeneidade entre seus ocupantes. Riqueza e poder possuem elementos explícitos de ostentação. Daí a riqueza que estes elementos oferecem como território de análise para construções mentais, sociais e culturais. É um território de representações, sem dúvida! Mas tais construções iam além: os cemitérios podiam segregar não apenas por seu mobiliário e posição social. Desde o passado remoto, os mortos poderiam ser incluídos ou excluídos a partir de seus dotes ou preferências espirituais. Quanto mais considerados próximos da Divindade mais próximos poderiam ser enterrados dos templos e locais de adoração. Em tempos mais recentes os cemitérios criaram a segregação religiosa. E assim protestantes não podiam ser enterrados em cemitérios cristãos, suicidas não podiam ser enterrados em solo cristão, nem mulçumanos em cemitérios não-mulçumanos e assim sucessivamente. A morte e seus corpos carregavam o estigma espiritual de suas opções e escolhas feitas em vida. 

Ter em mente todos os elementos citados acima não significa esquecer-se de outras dimensões.
Passear por suas Alamedas propicia um silêncio e um contato com o tempo de histórias que já se foram, personagens petrificados em sorrisos de fotografias, em frases nas placas com datas, locais de nascimento, dedicatórias, epitáfios ou mesmo frases avulsas que sintetizam  pensamentos e ideias dos que foram ou dos que ficam. A comunicação entre vivos com seus mortos e dos mortos por meio de seus epitáfios são gravados em pedras e materiais de longa resistência como mármores, granitos. São assim um convite à permanência e resistência ao tempo e intempéries. Afinal ali estarão, imóveis… colocadas para resistir às muitas estações e gerações. Só farão sentido se assim forem e se assim conseguirem se manter frente à passagem do tempo por elas.

Estes escritos são, portanto, o registro do Tempo. São um mergulho de alma que nos remete a vidas que se passaram e relações que se entrelaçaram. Vínculos expostos publicamente num gesto final que pretende ser de resistência ao esquecimento.  Este território da morte perdido na cidade dos vivos é um território de transição: local de saudades de lembranças, abandonos, vidas que se deixam, vidas que permanecem.  Esta transitoriedade presente e calada nos faz pensar sobre permanência e imanência, e mostram a relação que seres humanos possuem entre si e com a sua representação de seus medos, suas inseguranças, esperanças e até fé.
Inevitável não pensar em alguns casos como o abandono chega e avança: delapidação, vandalismo, esquecimento, estão presentes em muitos destes locais.

Em outros lugares, ao contrário, somos levados a observar o cuidado com a lembrança personificada pela presença viva de flores e plantas. Afinal, estas servem para nos fazer lembrar que a vida possui seus ritmos, obedecem estações e estão em meio a esse tempo passado.

Os cemitérios, tanto como as cidades, envelhecem e até morrem. Deixam de ser territórios de lembrança, culto e devoção. Vencidos pelo tempo, muitos apenas deixam de existir. Outros, tal como muitas cidades ganham robustez com a passagem do tempo por meio dos personagens que ali tem seu destino final. Oferecem a todos o testemunho de um outro tempo e seguem sendo uma cidade de mortos no mundo dos vivos.
Paradoxal portanto, que este mergulho nesta cidade dos mortos, revela o quanto de vida pulsante existe em suas ruelas, quadras, muros e extra-muros. 

Os Mortos e o Luto em Tempos de Pandemia

Não poderia deixar de abordar o tratamento dado a morte e seus corpos em tempos de pandemia. 

A Pandemia de COVID19 trouxe ao mundo uma outra relação com todos os ritos relacionados aos mortos e seus parentes: desde os processos de isolamento no período crítico de internação, até sepultamentos sem velórios acompanhado por apenas uma ou duas pessoas. A experiência do luto deixa de ser restrito a um grupo familiar e ser compartilhado por cidades, países, continentes. A vivência da doença e morte é levada ao paciente como experiência solitária. A morte e sua materialização ocorrem em valas comuns ou sepulturas que se espalham pelos cemitérios aguardando caminhões frigoríficos e filas intermináveis de carros funerários. A morte ganha um status de linha de produção com excedentes de corpos insepultos.  Os corpos perdem o direito dos seus ritos: procedimentos de tanatopraxia (lavagem e preparo do corpo para o rito fúnebre) por exemplo, deixam de ser feitos. Os corpos possuem terão que passar por procedimentos de limpeza com produtos adequados, são embalados em plásticos com zíper e entregues para sepultamento em um caixão lacrado. Sem velórios, os corpos seguem para o sepultamento ou cremação acompanhados por no máximo quatro pessoas.
As despedidas comuns aos entes queridos deixam de ser possíveis, e em muito casos a pessoa que entra no hospital para isolamento nunca mais retornará. 

O Brasil, apesar de todo o negacionismo em relação às mortes, teve cemitérios lotados, covas rasas, retroescavadeiras, caminhões frigoríficos e até valas comuns! Tudo revelando a forma como a doença inesperada escancarou despreparos, desrespeitos e alguma negligência por parte de autoridades. Afinal, a cidade dos mortos pobres nas cidades dos vivos, significa invisibilidade constante. Os cemitérios apenas existem nas áreas periféricas para dar destino aos corpos que abandonam a vida por doenças e mortes violentas. Não cumprem uma função social de conforto, mas mais uma vez de exclusão e silêncio.  

Exemplar destas cenas são rapidamente localizadas, mas creio que dois cemitérios representaram muito bem o que foi a invasão de um inimigo oculto na vida das cidades. O cemitério de Manaus nos ofereceu cenas que serão icônicas do que significa improvisação e um estado acéfalo: valas comuns e retroescavadeiras.

Outro exemplo as imagens aérea do maior cemitério de São Paulo (Vila Formosa) com covas abertas antecipadamente aguardando seus mortos, que chegavam em filas de carros fúnebres. 
Sem ritos, túmulos ou cerimônias e despedidas, as cruzes brancas com números identificam os mortos em valas estreitas e rasas. Uma explosão demográfica na cidade dos mortos: crescimento desordenado, sem planejamento, vias de acesso ou quadras…

O espaço, que em uma configuração planejada seria de uma determinada dimensão tem as sepulturas delimitadas por madeiras para separar o espaço mínimo entre os corpos e sua urna. Tal a quantidade de corpos perfilados.  

O tempo ainda nos mostrará com maior amplitude as cicatrizes nos tecidos destes solos, sagrados para alguns, e suas consequências na forma de entender este processo de mortes coletivas e a lida com o luto. De concreto temos é um novo espaço criado pela pandemia nas áreas periféricas de todas as cidades: um espaço que não mais apresenta uma arquitetura tumular, mas simplesmente caminhos perfilados de caixões, justapostos lado-a-lado. 

A desigualdade se manterá entre ricos e pobres, já que para o caso dos endinheirados seus corpos serão depositados em seus mausoléus e túmulos de família. A escrita da pandemia nos cemitérios da cidade deixará seu desenho de exclusão e indiferença muito bem marcados. 
Não concluo, pois há uma pandemia em ação. Os corpos que deixa atrás de si contam trechos de muitas histórias. 

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Artigos relacionados:
Rezende, Eliana Almeida de Souza.  “Os historiadores e suas fontes em tempos de Web 2.0“. Publicado nos Cadernos do CEOM, ‘Documentos: da produção à historicidade”, Capa > v. 25, n. 36, Editora Argos, Chapecó, 20 (acessado em 01/11/2020)
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Ventres urbanos: cidades e sanitarismo“. Revista Ler História. Dossiê Guerras Civis, Lisboa. n. 51, 2006. pp 135-165 (acessado em 01/11/2020).
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade” (acessado em 01/11/2020)

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Pelas Janelas do Confinamento

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Sempre gostei de pensar sobre como uma fotografia funciona a partir do enquadramento que o fotógrafo nos oferece. O fotógrafo hábil é aquele que consegue recortar e enfocar partes que deseja destacar ou omitir. O enquadramento revela ao mesmo tempo que esconde. No recorte dado pelo fotógrafo há o que se quer mostrar, e todo o resto compõe o que chamamos extra-quadro. Tudo o que não interessa ao olhar fotográfico é simplesmente silenciado pela ausência imagética. A forma de enquadramento e enfoque trará ao observador a sensação de que não falta absolutamente nada. Tudo está ali.

A mesma lógica pode ser usada a partir dos enquadramentos de nossas existências: o que pomos em relevo e o que simplesmente omitimos ou escondemos.

O mundo que nos cerca é um palco cenográfico, onde cenas são justapostas e ganham alguma relevância, enquanto outras ganham sombras e desimportância.

O período de isolamento social conseguiu oferecer a cada um de nós um ponto referencial de observância do mundo e de expressão por ela: nosso olhar, nossas janelas, varandas, portões.

De forma especial e totalmente inesperada, dada às convulsões sociais pelas quais passamos, nossas janelas transformaram-se em camarotes, ora para simplesmente observar, ora para aplaudir e se manifestar. Historicamente, estes espaços de vida privada não tinham comunicação direta com a rua, mas eram sempre vistas como forma de uma vista indireta e contemplativa. Lá fora a rua estava distante e a janela oferecia a possibilidade da vista privilegiada do interior para o exterior, mas não o contrário disso. A solidão contemplativa era garantida por vidraças, venezianas, cortinas. Todo um aparato para velar, esconder. Do outro lado da rua apenas um quadro pendurado na arquitetura velado por cores de um tecido feito para ser cortina e barreira.

Crédito: Lionel C. Bethancourt

A experiência do isolamento social estendeu uma pausa imensa em vidas, planos, existências. Esperar…esperar… passou a ser o empreendimento de todos. A mobilidade quase infinita, deslocamentos rápidos, migrações simplesmente foram freados. Emparedados, enquadrados e fechados… eis no que o mundo teve que se converter. O confinamento se colocou como questão de sobrevivência, e com isso imperou sobre nossas vontades.

Mas nem tudo precisava ser contido. Novos meios foram encontrados para resignificar nossas existências, descontentamentos, frustrações, bem como momentos de contentamento, alegria, gratidão.

Sob esta ótica que neste período de isolamento as janelas e varandas converteram-se em espaço de troca. Uma nova estética se pôs, o mundo do interior de nossas casas revelou-se. Houve aplausos, músicas tocadas ou cantadas, buzinaços, ‘panelaços’ e até projeções de imagens, protestos e palavras de ordem, irreverências e muito ativismo. As janelas ofereciam com isso, o espetáculo da presença, da vida, do brinde, da resistência, presença das ausências…da procura do Outro em todas às suas formas ou solidariedades de objetivos ou ameaças comuns. Eram coletivos na expressão geral, mas ao mesmo tempo anônimos em nossas individualidades. As interações nos davam uma identidade através de pautas e solidariedades comuns.

As trocas simbólicas decorrentes da impossibilidade dos contatos físicos surgiam de forma espontânea e quase viral. As janelas, convertidas em abertura para o mundo e não mais como uma tela, um quadro, um enquadramento para ver ou se esconder contemplativamente. Tornaram-se um espaço para o encontro, para a troca, para a conexão num mundo onde a conexão virtual não basta às emoções, onde as trocas podem ser feitas de formas mais intensas e interativas. A criatividade encontrou muitas formas de manifestação: foram brindes, cantos, palmas, cores, apresentações musicais várias. A janela abria-se para o mundo e convertia-se em passagem/exposição. É estranho pensar nisso, já que parecia ser ponto pacífico que as pessoas estavam muito satisfeitas com suas redes sociais e contatos virtuais. Mas a ausência das ruas e seus espaços sociais de trocas e vivência mostraram o quanto ainda precisamos de tudo isso.

O mesmo se dá com a ocupação do espaço urbano/social: as projeções tão em voga, em especial na cidade de São Paulo revelavam isso de forma fantástica: imagens se projetavam de forma gigante em outros prédios que também se manifestavam. Uma estética diversa de resistência, ocupação e projeção digital e real no Outro os seus desejos e frustrações. O espaço social ganhava outra dimensão a partir do enquadramento/exposição nas janelas e varandas das cidades. A projeção encontrava na arquitetura bruta de fachadas e concreto a tela perfeita para funcionar como retrato e exposição. Sem circundar ou limitar a aparição a imagem extrapolava os limites construtivos e podia espalhar-se por outros prédios. Um diálogo interessantíssimo de desejos, vontades, protestos e “gritos” de silêncio povoado apenas pelas imagens. A imagem neste sentido era única, mas as vozes que a acompanhavam eram coletivas, deixavam de ser o indivíduo para ser o condomínio, o bairro, a cidade…o país.

Daí o sentido de ocupação do espaço urbano como campo de lutas e resistência. De reivindicações e protestos, de solidariedades…

Mas e aquela tão presente e às vezes inacessível “janelas da alma?”. Creio que aqui foi o ponto onde muitos definitivamente tiveram muitos problemas com o isolamento social. O confinamento levou muitos a ter que recolher-se para seu interior e ver o que habitava em suas janelas interiores. O contato com esta alma habitante, para alguns, foi carregada de percalços: conviver com o universo interior pode ser muito difícil. Longe das vozes externas que nos tiram a concentração e distraem, as vozes da alma podem ser muito ruidosas. Tão ruidosas que simplesmente não se consegue calá-las. A experiência da solitude para alguns é praticamente impossível.

A solitude é aquela experiência de estar consigo mesmo, mas preenchido, não há a sensação de estarmos sós. O pensamento é companheiro e o quê os olhos veem e o corpo que sente são os alimentos desta alma. São interlocutores e incentivadores da profunda existência interior. Para estes, a experiência deste silêncio interior é bem vindo e o período de isolamento social favoreceu experiência agradáveis de estar consigo mesmo. Para outros, foi a sensação de aprisionamento solitário, melancólico e até depressivo que imperou.

Como vizinhos de janelas geminadas, a alma pode muito bem relacionar-se com os de dentro e os de fora, dependendo de como prioriza e sente todos os estímulos que lhe chegam. A janela que abre para o interior também é uma perspectiva, um enquadramento de sua atitude perante a vida. Ao fazer isso, como o fotógrafo enquadramos e enfocamos o que para nós é importante, e simplesmente omitimos ou desconsideramos o extra-quadro. Não acho que se precisa viver uma mentira. Basta apenas entendermos que nossas perspectivas tem contextos e se inscrevem dentro dele. Pôr em evidência alguns aspectos não significa que tudo o que está no extra-quadro não existe. Quando mudarmos o olhar tudo estará lá. Por isso é bom conhecer e conviver com todas as nossas mobílias interiores.

Provavelmente isso não se manterá, e muito em breve retornaremos aos nossos medos, inseguranças, trancas, vidraças, cortinas, telas de proteção. Mas teremos experimentado, ainda que brevemente, uma forma de relação interativa com uma sociedade inteira a partir não de uma tela de computador, mas de uma janela que se abre e deixa entrar.

Como podemos ajudar?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria, conhecimentos testados e experiência prática para auxiliá-lo com as melhore práticas.
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