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Quando as livrarias morrem…

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Recentemente tivemos o fechamento de muitas livrarias não apenas no Brasil mas pelo mundo à fora. Fato que nos causa certa estranheza por seu significado, já que ao ‘morrerem’ levam consigo todo um modo de convívio possibilitado por suas prateleiras e frequentadores. O vazio deixado ultrapassa questões como salões e lojas vazias. O que o corre é uma morte simbólica de muitas formas de vida e de trocas: a intelectual, a cultural, a criativa, a recreativa, a afetiva.
Explico:

Cria de São Paulo, o percurso por livrarias e sebos da cidade faziam parte de meus itinerários propositais: de livrarias pequenas em alguma esquina de alguns bairros à grandes livrarias com acervos imensos havia de tudo. Nos meus tempos da faculdade existiam as livrarias espalhadas pelo Campus que ofereciam temas e autores muito específicos de cada área. Era fácil nos perdermos entre suas prateleiras e folhearmos com voracidade os exemplares que estavam ali para serem manuseados, folheados, apalpados, cheirados e até “degustados”, aumentando ainda mais o desejo de trazê-los para as prateleiras de casa. 

E assim, a cidade tinha para mim como suas referencias as livrarias e os quarteirões em que elas existiam, e as cafeterias que as acompanhavam. Eram circuitos completos de possibilidade e relações, onde a história da cidade e a minha própria história se entrecruzavam e faziam surgir memórias com notas diversas: desde as olfativas às gustativas e emotivas. Alguns trechos especiais ofereciam, cinemas com livrarias e cafés como era o caso do Belas Artes ou dos cinemas da rua Augusta que foram se sucedendo pelos anos até finalmente baixarem suas portas. Pelas ruas que formavam apenas alguns quarteirões tínhamos o melhor de livros de Cultura & Arte, mas não apenas nas livrarias. À noite os vendedores de livros usados montavam suas bancas e vendiam ou trocavam com outros. Eram roteiros perfeitos com caminhos perfeitos, estimulavam paixões, imaginação, introspecção e mergulhos profundos a ideias diversas desenvolvidas em diferentes tempos. Os autores serviam como vozes de inquietação e estímulo, além de companhia perfeita para tardes chuvosas e cantos acolhedores. Às vezes, estes livros nos faziam companhia nos transportes públicos ou momentos de longas esperas. 
Eram fiéis companheiros nas idas às bibliotecas enquanto pesquisas eram desenvolvidas. Mundos e civilizações se descortinavam… sociedades e comportamentos analisados. As livrarias serviam como bunkers que nos serviam de proteção ou ataque ao que quer que fosse. Sentíamos que estávamos abrigados e protegidos com os nossos.

Mas a cidade foi sendo ‘consumida’. Numa autofagia muito própria, diferentes territórios foram desaparecendo dando vez para que cinemas virassem templos, antigas residências que formavam um quarteirão inteiro viravam da noite para o dia estacionamentos. Em outros casos, incorporadoras que conseguem tornar caixas de 15 metros quadrados em ‘loft‘. Palavra chic que significa apenas que você come, dorme e vive num cômodo apertado. O adensamento populacional trouxe gentrificação aos locais e antigos lugares de encontros possibilitados por livrarias ou pequenos livreiros foram sendo simplesmente abduzidos.  

Em verdade, em muitos bairros as livrarias foram simplesmente desaparecendo, deixando para trás a memória dos que ali iam, liam e trocavam experiências, leituras… vidas. 
As portas baixadas, com seus letreiros desatualizados e em vários casos, as pichações indicavam que as livrarias que ali habitavam haviam deixado de existir e que nunca mais retornariam. As fachadas se transformavam em um grande epitáfio simbólico da morte literária ocorrida.

Afinal, o circuito propiciado por livros, leitores e locais que abrigam leitores e ideias, fazem com que haja uma rede de circulação criativa. Se os lugares que abrigam tais livrarias começam a desaparecer uma ‘morte’ metafórica começa a ocorrer. 

Uma livraria, tal como uma biblioteca é um espaço múltiplo e diversificado que oferece em suas prateleiras títulos, sonhos, visões, caminhos… Quando deixam de estar ali presentes deixam todo um espaço de vivência, como se fosse uma grande e irremovível cratera. 
Torna-se um não-lugar, já que até um determinado ponto era referência e lugar.

Mas como poderiam morrer? 

As livrarias não morrem apenas quando baixam suas portas. Morrem todos os dias quando suas prateleiras precisam ser preenchidas com joguinhos eletrônicos, artesanatos, quebra-cabeças e pequenos objetos que servem às lembranças. Quando os marcadores de páginas deixam de existir, pois muito lerão apenas pequenos trechos em suportes digitais. 

As livrarias começaram a morrer, quando os textos pararam de ter o tamanho que seu escritor queria para que suas ideias se expandissem e brincassem com o imaginário de seus leitores. Aos poucos, os livros começaram a ter que ser escritos com poucas palavras e passaram a ser recheados com mais imagens. Os textos, que antes circulavam entre pessoas no formato de livro percorrem agora uma teia digital que usa emogis para indicar a qualidade do escrito. 

E não apenas isso! 

Os formatos digitais oferecem as editoras como a Amazon a possibilidade de saber o número de páginas lidos por um leitor, em quanto tempo, e se foi deixado em algum momento da leitura. A métrica serve de indicador para a editora saber se certo gênero ou autor merecem ou não ser publicados.

E assim, numa relação que era apenas entre leitor e escritor, entra uma figura estranha e algorítmica que determinará a morte literal deste ou daquele escrito e autor. 

Ainda tomando-se em conta este novo mundo livreiro de mensurações algorítmicas, novas perdas se somam: 

O mundo cada vez mais digital, cada vez mais distante e solitário é também mais bruto e literal. Afinal, para que gastar com metáforas que estimulem imaginação?! 

Os escritos seguem rápidos e ágeis para combinar com atenções cada vez mais dispersas. A escrita cada vez mais linear se assemelha ao mundo das animações, onde mais que um roteiro bem escrito, utilizam em sua maioria sons e cores que impactam.  

Mas as livrarias não começaram a morrer com o mundo digital somente. Elas começaram a morrer bem antes, quando os leitores começaram a rarear e quando a sobrevivência de grandes livrarias parecia estar ligada à existência de outros atrativos para além dos livros.  

Em minhas memórias, o maior exemplo que tive foi a Livraria Cultura localizada na Av. Paulista dentro do Conjunto Nacional. Acompanhei todo seu caminho de crescimento e ampliação, sua transformação em uma espécie de shopping onde você podia ouvir CDs antes de os comprar, leituras dramáticas, jogos, e uma quantidade infinita de lembranças eram oferecidas aos visitantes. Quando chegou a este ponto deixou de ser minha livraria do coração para ser convertida em ponto turístico e os que ali estavam não tinham nada que ver com a cidade que havia crescido e vivido. Eram estranhos visitando um lugar, não era a livraria que servia de ponto de encontro de todos que moravam ou trabalhavam na região. Essa mudança foi muito profunda e sentida por mim. Aos poucos, as livrarias especificas de Arte e Tecnologia foram novamente reunidas. Num dia andando desavisadamente encontrei no espaço de livros de Arte um mercadinho de conveniência do Carrefour Express. Senti como que uma facada no peito. A seguir, até o Restaurante e Café Viena baixou as portas. Entendi que era hora de parar pois a minha livraria já não estava mais lá. Havia se convertido em apenas um produto, e que não resultou em todos os seus esforços: faliu! 

Ou seja, o caminho de morte das livrarias físicas é um fato corriqueiro em todas as grandes cidades do mundo contemporâneo. Os livros continuam a ser lidos e consumidos, hoje com muitas possibilidade de suportes, mas os livros apenas nos chegam através dos correios. A vida trouxe-nos a possibilidade da entrega à domicílio e assim seguimos, mas sem nos conectarmos com o circuito que existiria se tantas livrarias não tivessem desaparecido. 

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Sampa: a Velha Senhora…

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A cidade que nasci faz anos.
Mas não é para mim um aniversário feliz.
Talvez muito ao contrário, é como se eu perdesse a cidade que nasci, e que me vi crescer e amadurecer.
Os anos tanto para as pessoas como para as cidades, podem trazer-lhes grande e profundas marcas. Suas existências são vincadas por tudo o que há ao seu entorno, mas também ao que é parte de si.

Ironicamente, minha cidade faz aniversário quase junto comigo, uma diferença de apenas 3 dias! E talvez por isso, impossível esquecê-la e não pensar no que o Tempo tem feito com ela e suas gentes, incluindo a mim mesma.

Antes, e talvez por causa do frescor da minha juventude idealista e com muitos objetivos ela parecia-me tão atraente, desafiadora e até bonita em seus cantos, pontos, vilas e diversidades. Me atraia pelo que pareciam ser seus desafios, movimentos, edificações e gentes. Parecia um caldo onde muito e tudo poderia ocorrer e eu estaria ali para ver tudo isso bem de perto. A metropolização e adensamento neste tempo me parecia altamente positivo e chegava achar que ela crescia junto comigo. Cada rua, prédio, viela e equipamentos públicos representavam para mim um mapa de tesouros a descobrir: eram trilhas por diferentes tribos e isso servia de estímulo.
As ruas sinuosas e sem planejamento sempre foram desafios aos que por ela passam: tradição mantida deste os tempos de tropeiros e bandeirantes, mas que sempre foram para uma nativa um meio de fugir de imensos congestionamentos. As ruas tinham significado, alma, histórias. Bastava chegar até elas que todo o repertório de memórias eram acionados. Odores, sabores, cores me enchiam de recordações e isso era mesmo muito bom.

À medida que o tempo passou fraturas começaram a se fazer. Talvez tenhamos nos perdido nos excessos: gentes densamente amontadas em espaços exíguos foram tornando espaços antes tão agradáveis e estimulantes e locais que deixei de reconhecer como os que me acompanharam por toda a minha adolescência.

As sombras de prédios cada vez mais altos foram trazendo sombras e compartimentos. Cada vez menores, as vidas começaram a se miniaturizar, os espaços de convivência quase sempre se transformaram em estacionamentos, cinemas em igrejas, praças em ocupação para consumo de drogas, o verde foi desaparecendo na mesma velocidade que o asfalto e as vias se entupiam de latas sobre rodas, as livrarias foram paulatinamente dando lugar à venda de eletrônicos e quinquilharias sem valor agregado quase que algum.

Os relógios parados às portas de grandes magazines mostram que o tempo não volta, também não marcam mais as horas das sirenas, das entradas e saídas de fábricas, construções ou comércios. As portas fechadas às centenas nos apresentam apenas portas pichadas no aço escurecido de fuligem e poeira.

E assim, pouco a pouco fui sentindo que perdi a cidade em que nasci. Já não a reconheço como minha. Completamente gentrificada expulsa para longe os que são seus filhos e acomoda o capital como uma nuvem de gafanhotos, que muito em breve a abandonará e seguirá para o próximo ponto de destruição.

Infelizmente todo este processo autofágico foi mudando completamente minha perspectiva e olhar.
São Paulo não é mais aquela que eu via, vivia e sentia. Perdeu-se em algum momento da minha existência.

O olhar, hoje mais distante construído por muitos deslocamentos, idas, vindas e desapegos me obriga a vê-la de outra maneira.
Hoje ela está resignificada por mim.
Neste novo olhar detecto:

Praça Carlos Gomes – SP

Sampa agoniza…
Sinto-a como uma Velha Senhora que está morrendo. E morre, não em seu momento de glória e vigor.
Deixa a cena de forma triste… é um corpo obeso que se movimenta com dificuldade: excedeu em muito suas capacidades de acomodar seus volumes imensos.

Suas artérias estão obstruídos e doentes. Não lhe faltam pontos de congestionamentos, deterioração, cicatrizes…
Seu pulmão falha, e quase não respira. Falta-lhe oxigenação. O cinza toma conta do ar que a alimenta. 
Seu coração é o mesmo (um centro doente e volumoso) que já não acomoda e nem irriga suficientemente suas extremidades. Muitas partes sofrem a gangrena da pobreza extremada, da violência e de todo o conjunto que a miséria humana consegue patrocinar. O coração que antes batia forte hoje arfa com dificuldades de dar pulsação e ritmo ao que está distante.

Seus intestinos param dia a dia de funcionar. Os dejetos paralisam funções e não fluem como deveriam: seus córregos, rios e esgotos são apenas um caldo de abandono e descaso. Em vez de vida pulsando e se movimentando, o que há são vestígios dos restos: que se avolumam como indesejáveis e inservíveis. 

A visão turva, opaca e sem brilho lhe impede de enxergar a lucidez que antes via em fachadas, arquiteturas… as cataratas do tempo lhe tiraram a beleza límpida de cores, vistas e formas. É como se apenas silhuetas borrassem seus sentidos. A paisagem que avista é apenas uma sombra triste de um tempo áureo que se foi. A vanguarda arquitetônica é susbstituída por ruínas ou bota-a-baixo todo o tempo… clareiras de cimento se abrem para serem transformadas em áreas de estacionamento ou prédios que massificam e acumulam pessoas em cubículos sem graça.

A Velha Senhora hoje vive de memórias retrógradas cozinhadas em banho-maria pelo abandono. O espelho mostra o quanto os anos lhe marcaram e trouxeram desgaste e imobilidade. Não se identifica com o reflexo no espelho. Nem mesmo nas suas velhas fotografias.

Suas vestimentas e ornatos estão puídos, largados, sujos… Não possui mais bens de valor e seus adornos quase não existem mais. Expropriadas por tudo e todos. Viu na passagem do tempo suas edificações e  equipamentos urbanos ser diuturnamente roubados, quebrados, destruídos.

Já não ouve tão bem: os sons são muitos e lhe sobram apenas ruídos sem nexo. Muito barulho e quase nenhuma nitidez.
E apesar de toda a velhice e decadência, ainda chegam-lhe, ávidos, os que buscam as imagens de seu passado.
Triste confronto a todos, pois no espelho só há uma projeção disforme… de uma passado que se foi…nada além…

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* Versão revista e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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